O Caminho de Perséfone

Bruna Cobellas

O Caminho de Perséfone, escrito por Obsidiyana, é um livro conduzido pela figura arquetípica e ancestral da Deusa Perséfone. A autora propõe uma jornada íntima e transformadora, abordando com coragem e sensibilidade não apenas os mitos e histórias da Deusa, mas também os aspectos sombrios que envolvem sua trajetória – tanto nos relatos antigos quanto na forma como foram distorcidos pelas visões patriarcais e religiosas ao longo dos séculos.

Desde as primeiras páginas, a autora deixa claro que seu objetivo é desmistificar a imagem fragilizada e romantizada de Perséfone como a donzela raptada e submissa. Em vez disso, ela nos apresenta uma Perséfone soberana, consciente, iniciadora e profundamente poderosa. Obsidiyana denuncia os estereótipos perpetuados pelas leituras tradicionais – muitas vezes influenciadas por uma sociedade machista – que reduzem a Deusa a um símbolo de fragilidade, ignorando seu papel central como Rainha do Submundo e senhora dos mistérios. Ela mostra que, assim como muitas outras figuras mitológicas femininas, Perséfone foi moldada conforme interesses de poder, sendo levada a papéis secundários ou erotizados para servir à narrativa dominante.

Raízes mitológicas de Perséfone

Um dos méritos do livro é trazer uma abordagem tanto histórica quanto arquetípica. A autora realiza uma investigação cuidadosa das raízes mitológicas de Perséfone, analisando versões antigas dos mitos, hinos sagrados como o Hino a Deméter e evidências arqueológicas, como estátuas, gravuras e vestígios de rituais. Ela também discute como essas fontes foram reinterpretadas ou silenciadas ao longo do tempo, revelando um apagamento sistemático das figuras femininas de poder nas tradições pagãs.

Deméter, mãe de Perséfone, também ganha uma abordagem diferenciada. Ao invés de ser vista como uma deusa possessiva e controladora – como algumas leituras superficiais sugerem –, ela é apresentada como uma guia espiritual que prepara a filha para o seu destino como regente do mundo subterrâneo. A autora convida o leitor a refletir sobre como a relação entre mãe e filha foi distorcida por uma ótica patriarcal, ocultando a verdadeira complexidade e profundidade desse vínculo.

Outro ponto de destaque é a forma como Obsidiyana conecta sua trajetória pessoal à da Deusa. Criada em um ambiente cristão tradicional, frequentando igrejas e cultos nos quais não se sentia acolhida, ela compartilha como foi despertando gradualmente para uma espiritualidade mais autêntica, guiada por sensações, visões, cheiros e uma profunda conexão com a morte e o invisível. Sua sensibilidade, desde a infância, se revelou, mais tarde, como um chamado espiritual que a conduziu até Perséfone – inicialmente por caminhos indiretos e panteões diversos –, até viver uma experiência mística marcante em sonho: um encontro vívido e transformador com a Deusa, cujo nome ecoava em sua mente com clareza e força.

A obra oferece ao leitor um mapeamento simbólico dos aspectos da Deusa, desde o contexto histórico das suas representações até seus atributos mágicos e naturais, como animais, plantas, ervas e objetos sagrados. Ela detalha com precisão os elementos associados à Perséfone e ao seu culto, mostrando como podemos compreendê-la por meio de um olhar sensível, que une razão e intuição. Ainda que o livro não se foque na prática ritualística em si, ele traz um capítulo dedicado ao culto devocional à Deusa, com sugestões de conexão especialmente ligadas às estações do ano e à energia cíclica que ela representa.

Um dos pontos altos do livro é a análise minuciosa do Hino a Deméter, em que cada trecho é cuidadosamente destrinchado para revelar suas camadas simbólicas. A autora destaca a importância de compreender o que realmente estamos entoando quando usamos esses textos em práticas espirituais, chamando atenção para o poder das palavras e da intenção. Esse cuidado com o conteúdo reforça o caráter iniciático e profundo da obra.

No campo da arqueologia espiritual, Obsidiyana nos guia por lugares sagrados relacionados ao culto de Perséfone e Deméter – cavernas, cemitérios, campos e centros artísticos que ainda ecoam os mistérios da Deusa. Essa busca ritualística por pistas do passado é uma forma de reconexão com a ancestralidade, um chamado para que nos lembremos de quem fomos e da força que habita em nós.

Opinião

Um ponto que merece ressalva crítica diz respeito à abordagem da autora sobre a Inquisição e sua tentativa de traçar paralelos entre a figura de Perséfone e as práticas atribuídas às bruxas perseguidas durante a chamada “era das trevas”. Embora seja interessante o esforço de vincular a Deusa a um contexto histórico de resistência e repressão, essa escolha pode gerar certa confusão conceitual. A bruxaria da Inquisição – como representada em documentos como o Malleus Maleficarum – foi, na verdade, uma construção cristã enviesada, voltada a justificar perseguições com base em dogmas religiosos, e não um reflexo autêntico das práticas espirituais ancestrais.

Obras como O Culto das Bruxas na Europa Ocidental, de Margaret Murray, embora controversas, apontam que as perseguições visavam eliminar vestígios das religiões pagãs anteriores ao cristianismo – como o culto a Diana – e não práticas realmente associadas a uma espiritualidade estruturada, como a que a autora tenta sugerir. Ter aprofundado mais as raízes da bruxaria na Antiguidade pagã teria sido mais coerente com o espírito do livro, já que a verdadeira conexão espiritual da bruxaria está ancorada nos ciclos da natureza, nos cultos da fertilidade e no sagrado feminino – e não nas distorções forjadas sob tortura e medo nos tribunais da Inquisição.

Conclusão

Em essência, O Caminho de Perséfone é uma obra voltada a quem deseja aprofundar sua conexão com a Deusa, compreender seus mitos com olhar crítico e reverente e iniciar um percurso pessoal de autoconhecimento, resgate do feminino sagrado e reconciliação com as sombras. A escrita de Obsidiyana é intensa, sensível e honesta – ela não pretende oferecer receitas prontas ou fórmulas mágicas, mas sim abrir portas para que cada leitora e leitor possa trilhar seu próprio caminho, iluminado pela presença transformadora de Perséfone.

2 comentários em “O Caminho de Perséfone”

  1. Willyara

    Amei sua resenha. Confesso que ainda não havia visto esse livro, mas já anotei aqui para uma futura leitura.

    Responder
    1. Livraria Leitura

      💙💙💙

      Responder

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Back to top