“Trabalhar e Viver” escancara o peso do mundo entre horários, algoritmos e sonhos

Ronaldo Gilleti
Seliga

O que significa trabalhar? Por que dedicamos boa parte da vida a algo que, tantas vezes, nos esgota mais do que realiza?
Em Trabalhar e Viver, segundo volume da série Reflexos do Mundo, o quadrinista francês Fabien Toulmé empreende uma viagem pelo mundo para investigar essa pergunta central — que, apesar de universal, ganha contornos profundamente humanos e culturais a cada parada que ele faz.

Ao longo das 360 páginas do quadrinho, publicado pela editora Nemo no Brasil, temos a consolidação da série Reflexos do Mundo, em que Toulmé reafirma sua vocação para contar histórias reais que refletem, com empatia e honestidade, os impasses contemporâneos. Aqui, o foco está naquilo que ocupa a maior parte do nosso tempo — o trabalho — e em como ele molda identidades, relações, sonhos e sofrimentos nas mais diversas partes de um planeta movido pelas engrenagens do capitalismo selvagem.

Temos em mãos o resultado de uma jornada que leva o autor da América ao continente africano, passando pela Ásia, com uma pergunta central pulsando em cada página: como as pessoas vivem — ou sobrevivem — por meio das relações laborais? O resultado é uma narrativa tecida por fios de relatos jornalísticos e de viagem, formando uma colcha de retalhos de entrevistas, observações pessoais e reflexões sociais — tudo com muita fluidez e sensibilidade.

Contexto

Nos Estados Unidos, Toulmé mergulha nas histórias da “grande renúncia” pós-pandemia, ouvindo trabalhadores que pediram demissão voluntária para buscar sentido em suas vidas — ou simplesmente escapar da exaustão. Já na Coreia do Sul, o tom se torna mais grave ao abordar o fenômeno do gwarosa (a morte por excesso de trabalho). A dor da família de Deok-Jun, jovem cuja vida foi ceifada pela lógica impiedosa da produtividade, ressoa como um grito silencioso que percorre o material. Por fim, nas Ilhas Comores, ele se depara com um cenário diferente, em que a escassez de oportunidades desafia as noções mais básicas sobre trabalho, direitos e dignidade.

Esses cenários diversos são costurados por personagens reais, como Austin, Hyun-Cheol, Zaidou e Gabby, protagonistas das contradições entre vocação e obrigação, realização e sobrevivência. Cada história carrega um pedaço da complexidade do mundo contemporâneo, e Toulmé conduz essas vivências com um olhar respeitoso e aberto.

Em vez de discursos prontos, ele compartilha dúvidas, reconhece seus limites e nos convida a observar junto com ele. A presença de interlúdios analíticos com a socióloga Dominique Méda acrescenta densidade ao projeto sem quebrar o ritmo da leitura. Pelo contrário: os trechos ampliam as questões individuais para o campo estrutural, mostrando que a precarização, a pressão por desempenho e a falsa promessa da meritocracia fazem parte de um sistema que nos atravessa como uma lança, sem piedade.

Visualmente, a HQ mantém o estilo direto e expressivo de Toulmé, com traços simples, cores suaves e uma narrativa gráfica clara — o que facilita a imersão mesmo nos momentos mais pesados. Humor, introspecção e dinamismo se equilibram bem, evitando que a leitura se torne didática demais ou mesmo deprimente. Os relatos são fortes, sim, mas nunca sensacionalistas; e as críticas sociais surgem com naturalidade, como parte das experiências compartilhadas.

Impactos do trabalho na vida das pessoas

Cabe enfatizar também que um dos grandes trunfos da obra está na maneira como ela trata o trabalho não apenas como um tema econômico, mas existencial. Em cada história, percebe-se que o emprego — ou a falta dele — tem impacto direto sobre autoestima, saúde mental, pertencimento e até mesmo a percepção do tempo. A rotina, o burnout, a ansiedade do “não ser suficiente” ou de “não produzir o bastante” são tratados com honestidade, sem recorrer a clichês motivacionais.

Nesse aspecto, a HQ ecoa o espírito inquieto de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, em que cada cidade visitada por Marco Polo é uma metáfora de experiências humanas profundas. Assim como Calvino constrói geografias simbólicas para refletir sobre o tempo, a memória e a identidade, Toulmé percorre o globo não apenas em busca de dados, mas de sentido — transformando geografias reais em retratos emocionais das formas de existir.

Se Toulmé já era admirado por obras como A Odisseia de Hakim e Duas Vidas, é na série Reflexos do Mundo que ele decide aprofundar seu olhar, atento às grandes indagações humanas e disposto a atravessar fronteiras físicas e simbólicas para respondê-las.

Formas de viver

Em Trabalhar e Viver, o autor não oferece soluções prontas — e talvez por isso o livro seja tão poderoso. Ao final da leitura, o leitor carrega consigo fragmentos de realidades distintas, mas uma inquietação comum: o que estamos sacrificando em nome do trabalho? E que outra forma de viver seria possível?

Ao virar a última página, fica um convite à reflexão — não apenas sobre o trabalho, mas sobre a vida que gira em torno de cada um de nós. Uma HQ essencial para um mundo que precisa, urgentemente, desacelerar e repensar suas prioridades.

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