O Longo Amanhã: quando saber é suspeito


Existe um tipo de ficção científica que não se contenta em mirar o futuro com deslumbramento, nem em pintar distopias absolutas. Há obras que preferem explorar os tons cinzentos do que vem depois da ruína, não para explicar como tudo ruiu, mas para questionar o que decidimos reconstruir a partir dos escombros. O Longo Amanhã, de Leigh Brackett, é exatamente esse tipo de livro: uma narrativa de amadurecimento em um horizonte pós-apocalíptico, onde as respostas fáceis foram banidas junto com as cidades, a tecnologia e o pensamento científico.
Publicado originalmente em 1955, sendo um dos lançamentos deste ano da Editora Aleph, o livro apresenta um mundo que sobreviveu a uma guerra nuclear, mas escolheu apagar quase tudo que pudesse lembrar o passado. A ciência virou pecado. As grandes metrópoles, lembranças perigosas. O presente é rural, dogmático, simplificado, e o saber tornou-se suspeito.
Brackett, também roteirista de Hollywood (O Império Contra-Ataca, entre outros), escreve com precisão e contenção. Constrói um mundo opressivo sem precisar de grandes explicações: basta sugerir. Sua maior força está em fazer com que o leitor sinta, antes de entender, o sufocamento de uma sociedade onde questionar é quase um ato de traição.
O verdadeiro motor da obra, no entanto, é a inquietação do protagonista. Aos poucos, ele percebe que há algo profundamente errado no silêncio ao redor. A curiosidade não explode, ela corrói. O livro não trata da grande rebelião, mas da lenta germinação da dúvida, que vai rompendo as certezas com o tempo.
Para alguns leitores, o ritmo deliberadamente lento pode ser um obstáculo. Mas é justamente essa lentidão que permite à autora construir tensão psicológica e dar peso às escolhas dos personagens. Em vez de soluções fáceis, ela oferece dilemas morais sutis, desconfortáveis e profundamente humanos.
O tom agridoce do romance é talvez seu aspecto mais marcante. Este não é um livro que oferece utopias. Aqueles que preservam o conhecimento também o mantêm sob vigilância. O saber, que parecia libertador, pode se tornar arma de controle, mesmo entre os “iluminados”. A liberdade, se existe, vem sempre cercada de condições.
Brackett nos força a abandonar a ideia de progresso como uma linha reta. Em vez disso, sugere que o avanço real exige ética, responsabilidade e, acima de tudo, consciência. A esperança, aqui, existe, mas é madura, desencantada, lúcida.
Lido hoje, O Longo Amanhã ecoa de forma incômoda. Seus temas dialogam com os tempos de negacionismo, desinformação e censura. Não é um manifesto, mas um espelho turvo onde o reflexo do passado (1955) e do presente (2025) se fundem em uma pergunta incômoda:
Quantas vezes precisaremos repetir os mesmos erros até perceber que progresso, sem ética, é só barbárie sofisticada?
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Brenda Evelyn
Fiquei de olho nesse lançamento e agora com sua resenha com certeza vai para lista.
Rodrigo Sande
Sensacional!
Mesmo sem ler já me parece um livro essencial para analisar o comportamento limitador de uma sociedade que preza pela benção da ignorância.
Vitor David
Esse livro é muito bom. Parabéns pela resenha 👏.