Piquenique na Estrada: lixo alienígena ou tesouro capitalista?

Dizem que duas cabeças pensam melhor do que uma e, aparentemente, os irmãos
Strugatsky levaram esse ditado popular a sério e uniram seus cérebros para escreverem juntos
o livro Piquenique na Estrada.
Esse é um livro sombrio. Esse é um livro normal. Esse é um livro com pessoas
normais em um ambiente sombrio – o que transformou as pessoas normais em pessoas
sombrias. Esse é um livro sobre o dia a dia no capitalismo.
Capitalismo x Comunismo
O ano era 1972 e o mundo estava dividido em dois grandes blocos, graças à Guerra
Fria (1947 a 1991): um alinhado ao capitalismo e outro ao comunismo. Duas potências
guiavam e influenciavam as polarizações: os Estados Unidos e a antiga União Soviética, atual
Rússia, respectivamente.
Os autores eram russos e, nas entrelinhas, podemos ver claramente suas opiniões
sobre o capitalismo. “Ah, mas o nome do livro é Piquenique na Estrada, e piquenique é uma
coisa boa. Não faz sentido eles colocarem esse nome para um livro de crítica ao capitalismo” –
você pode estar pensando. Particularmente, eu concordo que essa é uma atividade muito
legal, mas você já viu o que acontece quando pessoas mal-educadas vão fazer um
piquenique? Tudo é lindo – até o momento de irem embora. Garrafas são deixadas para trás,
guardanapos sujos são espalhados, talheres são esquecidos, objetos pessoais são perdidos
para sempre – ou seja, um caos. E é exatamente isso o que acontece no livro, mas, em vez de
pessoas terem feito o piquenique, foram extraterrestres.
A Visitação
Eis o que aconteceu: a Visitação. Esse foi um evento não previsto, no qual alienígenas,
não se sabe de onde, com qual objetivo, para onde foram depois ou por que ficaram tão
pouco tempo na Terra, visitaram seis localidades diferentes – nas quais deixaram diversos
objetos misteriosos.
Bom, adivinha o que aconteceu com esses itens? Já lemos e vimos filmes o suficiente
para prevermos que houve uma verdadeira onda de pessoas interessadas em comercializá-los.
O que elas depois descobriram foi que os artefatos – e as Zonas de Visitação – causavam
mutação genética, ocasionando tanto alterações fenotípicas quanto genotípicas. Apesar
disso, e talvez por isso mesmo, diversos grupos distintos ofereciam somas de dinheiro para
adquirir objetos como caldo de bruxa, esfera dourada, gotas-negras, baterias eternas, entre
outros.
Nesse cenário, somos então apresentados a Redrick Schuhart. Oficialmente, ele era
apenas mais um assistente de laboratório do Instituto Internacional de Culturas Extraterrestres
de Harmont. Nas horas vagas, ele era um stalker – ou seja, uma pessoa que arriscava a própria
vida entrando nas Zonas de forma ilegal, em busca de objetos que pudessem ser vendidos a
quem quer que fosse.
Redrick mantinha ambas as ocupações não por obrigação, mas por puro ato de
resistência. Caso mantivesse apenas o emprego formal, ele teria que abdicar do viver, das
pequenas alegrias que o faziam prosseguir. Teria que contar cada centavo; afinal, ele era uma
engrenagem de um sistema, e o sistema era muito maior do que uma mera engrenagem.
Na cidade criada pelos irmãos Strugatsky, Harmont, as pessoas precisavam encontrar
prazer nas pequenas coisas – até nas vis – para se sentirem importantes. Algumas recorriam à
bebida, outras ao poder, e havia aquelas que escolhiam demonstrar força contra os que não
podiam se defender.
Os habitantes de Harmont não são vilões, e muito menos heróis. São sobreviventes
que, ao se arrastarem pelas Zonas, tentam não ser arrastados pela vida. Condenam a
própria prole às mutações genéticas não por crueldade, mas por amor. Mesmo sabendo dos
riscos, preferem encará-los – eles não têm outra perspectiva.
Essa é uma obra rígida e, por vezes, cruel, mas traça claros paralelos com a realidade
no mundo capitalista. Por termos acesso ao fluxo de pensamento de alguns personagens,
conseguimos, se não ter compaixão, pelo menos entender que todos são peças em um enorme
tabuleiro, do qual só se dão conta da existência no momento em que não há mais volta.
Então, se por acaso você encontrar um objeto alienígena sendo comercializado,
aconselho: não encoste nele. A não ser que esse item seja um livro sobre uma Visitação
alienígena escrito por dois irmãos russos. Se tiver curiosidade o suficiente, você pode encontrar
um exemplar de Piquenique na Estrada na Livraria Leitura mais próxima da sua casa ou –
para não arriscar passar por nenhuma Zona de Visitação – no site da Leitura. Nesse caso
hipotético/real, agarre-o com as duas mãos e não deixe escapar essa história extraordinária
protagonizada por pessoas comuns.
Aline Caldas Ribeiro, elfa alienígena montada em um dragão de palavras.
Gostou do livro e quer outra recomendação? Leia sobre As Sereias de Titã 🪐
Willyara
Que resenha MA-RA-VI-LHO-SA. Se eu tinha dúvidas em ler esse livro, acabou de cair por terra. E quero ler pra ontem!!!!