Garota Invisível: suspense inédito sobre o despertar de uma vingança

Lisa Jewell ficou conhecida mundialmente após seu grande sucesso A Família Perfeita, que foi lançado no Brasil pela Intrínseca em 2022. Agora, três anos depois, chega às livrarias Garota Invisível; um suspense ambientado em Londres cheio de reviravoltas que fará o leitor se questionar o que é real ou apenas teoria.
A história
Saffyre Maddox, quando criança, viveu uma situação desagradável na escola que marcou a sua vida para sempre. Hoje, aos 17 anos, carrega um trauma que a impede de confiar nas pessoas, sentir que pertence a algum lugar, além de se automutilar para esquecer tudo. Aos 12 anos, seu tio Aaron, percebendo que a menina precisava de ajuda contrata Roan Fours, um renomado psicólogo infantil. Após três anos de tratamento ela enfim recebe alta.
Durante esse tempo, Saffire desenvolveu uma ligação afetiva muito forte por Roan o que a faz querer continuar o tratamento. No entanto, ele lhe dá alta. Sem as sessões semanais de terapia a adolescente encontra um jeito de se manter próxima ao ex-médico. Começa a vigiar a clínica onde ele trabalha, a segui-lo pelas ruas, observar a sua casa e família, e com isso descobre muitos dos seus segredos.
“Todo mundo espera que eu vá para a faculdade, porém às vezes acho que queria só trabalhar em um zoológico, talvez, ou em um pet shop.”
Em paralelo, conhecemos Owen Pick, um desajeitado professor de Ciência da Computação que é acusado de assédio sexual por duas alunas. Afastado do trabalho após a denúncia, ele encontra na internet apoio de outros homens que foram injustamente acusados como ele. É em meio a fóruns, blogs e muita pesquisa que conhece os incels, homens pouco atraentes para um relacionamento que têm como objetivo se vingar das mulheres.
Em 14 de fevereiro, Dia dos Namorados, Saffyre desaparece bem perto da casa de Owen. Além da investigação sobre assédio, agora ele é suspeito do desaparecimento da adolescente. Algumas semanas antes, Georgia, filha de Roan, foi seguida do metrô até em casa e tudo indica que o homem assustador era Owen. Agora ele precisa provar que é inocente em ambos os casos e que apenas teve muito azar por estar no lugar errado e na hora errada.
Em segundo plano, acontece um aumento de agressões sexuais na região de Hampstead, um lugar repleto de casas belíssimas, com seus jardins bem cuidados e portões imponentes que mantêm curiosos à distância. Um bairro tranquilo que vem se tornando cada vez mais sombrio com o passar dos dias. Mulheres relatam que foram atacadas em plena luz do dia. É seguro continuar morando ali?
“Fui criada por dois homens, o que acabou fazendo com que não me dê bem com garotas. Ou, para ser mais exata, com que eu me dê melhor com garotos. Eu costumava andar com os meninos quando era criança, e me chamavam de moleca, mas não acho que eu realmente era.”
Assim como Roan, outros personagens também guardam segredos. Caberá ao leitor juntar peça por peça e descobrir o que de fato está acontecendo em Hampstead. Quem seguiu Georgia? Quem atacou Tilly? O que Saffyre estava fazendo na noite em que desapareceu? Owen Pick é o agressor que usa balaclava?
Os personagens
Garota Invisível nos apresenta personagens bem diferentes entre si, no entanto, dois chamam bastante atenção: Saffyre Maddox e Owen Pick. A maneira como a autora vai construindo camada por camada de personalidade no decorrer da história mostra que ambos são bem mais complexos do que imaginamos à primeira vista.
Saffyre vivenciou diversos traumas no decorrer de sua vida. Sua mãe faleceu, depois foi seu pai, e por fim a sua avó. Ela ficou aos cuidados de seu tio Aaron, dividindo a casa com o avô doente. Essa é a única família que conhece. Ela não tem irmãos, primos e nem muitos amigos. Sua vida se resume a ser uma aluna exemplar. Afinal, com suas notas, ela poderá escolher qualquer universidade.
O lado sombrio que ninguém conhece é que, ainda criança, aos 10 anos de idade, aconteceu algo que escureceu a sua alma. Esse incidente tirou todo o brilho dos seus olhos, toda a sua vontade de viver. Mesmo após tantos anos ela ainda sente como se tudo tivesse acontecido ontem. As cicatrizes em seus tornozelos a lembram a todo instante o quanto as pessoas podem ser cruéis umas com as outras.
“Como seria fácil, pensa ela, abrir aquela área vedada, arrastar uma garota da rua, machucá-la, até mesmo matá-la, e esconder o corpo naquele vazio escuro e privado. E quanto tempo levaria até o corpo ser encontrado?”
Além disso, Saffyre se sente deslocada. O tempo todo pensa estar no lugar errado, na família errada, e tem vontade de deixar tudo para trás. Acredita que seu tio estará melhor sem a obrigação de cuidar dela, assim ele poderá encontrar uma esposa e formar a própria família como seu outro tio, Lee. A cada capítulo desvendamos mais uma camada sobre o seu passado e nos questionamos o que pode ter acontecido de tão grave na sua infância. Nesse ponto a autora conseguiu criar um suspense que envolve o leitor até as últimas páginas.
Owen Pick, assim como Saffyre, é um personagem cheio de nuances. Seus pais se separaram quando ainda era criança, ele ficou sob os cuidados da mãe. Porém, alguns anos mais tarde ela morreu de câncer. Aos 18 anos ele vai morar com sua tia Tessie em Hampstead, ela é a irmã mais velha de sua mãe. Seu pai está casado e tem outra família, e sua madrasta não é muito amigável. Ela considera Owen muito esquisito e prefere que ele more em outro lugar.
Owen é meio desajeitado, quieto e de poucos amigos. Saiu com algumas garotas, mas nunca teve um namoro sério. Aos 19 anos teve um encontro que o deixou arrasado. Depois dessa única vez, ele se tornou inseguro e nunca mais tentou se apaixonar por alguém ou deixar uma mulher se aproximar.
Quando ele é acusado de assédio sexual por duas alunas, seu mundo desaba. Como poderia fazer algo assim se não consegue nem ao menos dizer “bom dia” para uma garota? Owen sente um misto de decepção, raiva e vontade de deixar toda aquela vida para trás. Seu maior descontentamento é perceber que a coordenação da escola parece acreditar fielmente nas alunas e o afasta de suas atividades. Agora, além de ficar sem emprego, precisa enfrentar o desgosto de sua tia o dia inteiro.
“…Cate ficou sozinha na cama ouvindo raposas gritando no terreno baldio, observando as formas dos galhos do lado de fora acenando como uma multidão de zumbis através do tecido fino das cortinas, pensando demais em tudo.”
Mesmo sendo da família, Tessie trata Owen como um inquilino, ou seja, ele paga um pequeno aluguel desde que se mudou. Os cômodos da casa são trancados, ele tem acesso somente ao banheiro e à cozinha. Tessie, quando viaja, mantém o aquecedor desligado para economizar energia. O que obrigou Owen a comprar um mini aquecedor e mantê-lo escondido atrás do guarda-roupa.
Assim como Saffyre, ele se sente deslocado, acredita que não pertence aquele lugar, e guarda dentro de si o desejo de fazer parte de algo que tenha propósito. Quer se sentir amado, admirado, e não mais aquele homem desajeitado e invisível que ninguém nota. Quando seu destino cruza com o de Saffyre, ele nem imagina que a sua vida está prestes a mudar.
Referências da cultura pop
Começar a ler e perceber referências trazidas pela autora deixa o coração do leitor mais quentinho. Garota Invisível, diferente de A Família Perfeita, tem muitas referências da cultura pop. A primeira delas é a coruja chamada Harry (você pensou, eu pensei, todos pensamos em Harry Potter!). É uma lembrança que Saffyre guarda com carinho da infância. Quando o psicólogo lhe pergunta qual o momento mais feliz de sua vida, é da coruja que ela lembra e do quanto sentiu amor em seu coração. Essa é, sem dúvida, uma das cenas mais emocionantes na minha opinião.
Lisa Jewell traz ainda referências sobre The Office, quando Owen está na frente do espelho, analisa sua imagem e questiona se é apresentável, pois se considera mais bonito do que o ator da série. Essa cena é meio engraçada. Nunca parei para refletir se me pareço com algum personagem, mas fica o exercício para quem quiser tentar. A autora menciona também os super-heróis Super-Homem e Homem-Aranha. Como fã de Smallville, fiquei bem contente.
A escrita de Lisa Jewell

A Família Perfeita foi o meu primeiro contato com a escrita da autora, e desde aquele momento me senti envolvida em como ela constrói a história de um jeito a revelar pequenos detalhes e instigar a nossa curiosidade. Em Garota Invisível, essa sensação é ainda mais forte. O livro é mais dinâmico em diversos aspectos, ele é dividido em três partes: antes, agora e depois. Se você, assim como eu, gosta de passagem do tempo, vai achar incrível como a Lisa dividiu o livro.
“E então tudo fica silencioso outra vez, enquanto Cate observa as sombras escuras do lado de fora, com os pensamentos difusos se movendo pelos corredores do fundo da mente dela.”
Outro ponto interessante é a narração em 1ª e 3ª pessoa. A cada capítulo acompanhamos a evolução de um personagem diferente, mas somente um deles tem os fatos contados segundo a sua percepção. Muitos leitores desconfiam quando um suspense é contado dessa maneira, mas acredito que o diferencial é justamente deixar ao leitor a responsabilidade de acreditar ou não e tirar suas próprias conclusões.
A autora consegue ainda com habilidade nos fazer voltar no tempo e mergulhar na infância de Owen e Saffyre e perceber com certa tristeza como os traumas vividos definiram a personalidade de ambos ao longo dos anos. É possível ter empatia e entender porque eles guardam tanta dor e buscam uma vida diferente. Conforme a leitura avança, somos instigados a questionar os nossos próprios valores. É certo nos vingar de quem nos causou algum mal ou devemos confiar na justiça?
Como os traumas de infância definem a personalidade
Sempre que termino um livro, elenco as reflexões que considero importantes. Garota Invisível, em especial, nos faz pensar em como fomos educados na infância, a família na qual crescemos, os traumas que sofremos, e como tudo isso pode ou não definir quem nos tornamos. Somos fruto do ambiente ou é possível fazer escolhas diferentes e mudar o destino? Há a possibilidade de deixar o passado para trás e esquecer as feridas?
Quando eu tinha uns 4 anos, mais ou menos, o carro do meu avô caiu na água. Lembro nitidamente da água subindo, molhando os bancos, e a minha bonequinha de roupinha vermelha flutuando para longe de mim. Essa é a imagem que ficou gravada em minha memória. Às vezes estou estudando ou lendo e sinto como se estivesse nadando e fico com falta de ar, aquela sensação de água entrando pelo nariz. Minha mãe diz que a altura da água era baixinha e por eu ser criança isso se tornou “maior” do que a realidade. No entanto, sempre que fecho os olhos vejo a mesma cena.
“O prédio é um mistério, decide ela, um prédio para o qual as pessoas se mudam e de onde nunca mais saem, onde as pessoas penduram cortinas grossas e nunca as abrem e deixam um móvel apodrecer na entrada da garagem.”
O que aconteceu com Saffyre foi ainda mais doloroso. Como crescer, se olhar no espelho, e fazer as pazes consigo mesma após vivenciar algo tão traumático e acreditar que a culpa foi sua por ser tão ingênua? Como acordar dia após dia tendo que sufocar esse sentimento para que não seja consumida por ele? E nos momentos em que a dor se torna insuportável a única solução que encontra é se automutilar porque somente assim consegue se anestesiar e não sentir nada.
Lisa conseguiu construir uma narrativa intensa, com personagens humanos e dores reais. É fácil se colocar no lugar da adolescente e entender toda a sua dor, e torcer para que ela consiga deixar o passado para trás e enfim ser feliz de verdade. Assim como conseguimos entender o desespero de Owen ao ser acusado por um crime tão grave e sua tentativa de provar inocência.
As cicatrizes deixadas pela separação dos pais
Owen é filho de pais separados. Quando seu pai decidiu ir embora, simplesmente arrumou as malas e não olhou para trás. Naquele momento ele já mantinha um outro relacionamento fora do casamento. O filho tinha apenas 11 anos e sentiu-se culpado por toda aquela situação. Tanto que questionou a mãe se o pai estava deixando a família por não gostar dele.
Imaginar uma criança crescendo com esse pensamento nos faz sentir uma certa tristeza. Por um lado, o pai não demonstra amor, do outro, a mãe sofre com o abandono do marido. Owen que até então sentia-se seguro e protegido por ter uma família, agora vive a dúvida quanto ao futuro. Mudar de casa, de escola, fazer novos amigos, e crescer sem a figura paterna.
Além de todas essas mudanças, ele é pego de surpresa quando chega em casa um dia do colégio e encontra a mãe morta no chão. Agora, sem pai e mãe, ele precisa amadurecer e tomar conta da própria vida. Aos 18 anos ele vende o apartamento da mãe, paga todas as dívidas, e aluga um quartinho em Hampstead na casa de sua tia Tessie. Apesar de ser sobrinho, a tia é distante, fria, e não há sentimento de carinho entre eles.
“E mãos que se moviam feito pássaros exóticos estranhos e pálidos toda vez que ele descrevia alguma coisa. E tênis de corrida bonitos. Sabe, muito bons para um cara velho. E um cheiro de roupa limpa, meu cheiro favorito, mas também de árvores, grama, nuvens e luz do sol.”
Esse trecho da história me fez relembrar a separação dos meus pais. Meu pai, assim como o de Owen, se distanciou de nós e nunca tivemos uma relação próxima. Ele também se casou uma segunda vez e teve outros filhos, mas nunca os conhecemos. Durante um período da minha adolescência senti falta da presença do meu pai principalmente em eventos como os jogos escolares, para me levar aos lugares, me aconselhar, ou simplesmente me ensinar a jogar xadrez.
Talvez por isso sempre tive mais facilidade em fazer amizade com os meninos. Achava as conversas mais legais, interessantes, sentia como se tivesse um irmão mais velho. Aprendi sobre jogos de basquete, música antiga, poesia, e isso me preencheu de certa maneira. Tive sorte de conhecer pessoas incríveis que tornaram a minha vida mais leve e divertida. Essa é uma característica que desenvolvi ao longo dos anos: perceber o lado bom de tudo o que acontece. Mesmo que tenha sofrido com a separação dos meus pais, tentei enxergar as lições que poderia aprender.
“Eles começam a andar, os passos ecoando contra o asfalto na escuridão fria, e então desapareceram na rua, e eu ainda lá, congelada, invisível entre as árvores.”
Acredito que ter essa consciência é o que diferencia pessoas que nutrem o sofrimento, daquelas que decidem virar a página e transformar o que viveu em algo bonito ou menos doloroso.
Acompanhar a trajetória de Owen, as alegrias, tristezas, os desafios, nos faz questionar qual será a sua escolha diante de tantos obstáculos. Ele escolherá o papel de vítima e viverá sofrendo pelo que poderia ter sido ou tomará para si a responsabilidade e mudará o seu destino? Em alguns capítulos me senti triste por ele e curiosa para saber se a sorte dele mudaria. A autora criou esse personagem com maestria.
A incoerência entre vida profissional e pessoal

Outro tema relevante trazido pela autora diz respeito à ética profissional. Porém essa discussão é dividida em duas ocasiões. Na primeira levantamos o debate sobre qual é o momento certo de dar alta a um paciente. É o profissional quem decide? E quando o paciente acredita precisar de mais sessões? Qual é o ponto de equilíbrio entre a percepção de ambos os lados? Por que essas questões são importantes?
Como mencionei anteriormente, Safira sofreu um trauma durante a infância. Quando seu tio descobre que a menina se automutila, decide levá-la ao psicólogo. Após três anos de terapia, ela sente-se mais tranquila e parou de se cortar. Roan acredita que seu trabalho está feito. No entanto, Saffyre nunca lhe contou o que realmente aconteceu que desencadeou aquele comportamento. Ou seja, o médico tratou os sintomas e não a causa principal.
“É o cartão na gaveta chamando por ela. O cartão dizendo que há algo que ela não está vendo, que talvez ela não seja louca, nem má, nem errada.”
Na percepção da garota, ele deveria ter insistido mais e tentado descobrir se o trauma realmente foi curado. Sua análise é rasa e não percebe que há um passado muito sombrio por trás do sorriso que Saffyre carrega diariamente. Essa decisão a faz considerar que Roan está longe de ser o bom profissional que todos admiram. Conheço duas pessoas que tiveram experiências diferentes quanto à terapia. Uma delas faz tratamento há 8 anos e sente que realmente teve progresso. A outra fez durante um pouco mais de 1 ano e acredita que foi suficiente. Qual delas está certa? Acredito que depende do objetivo de cada paciente e também do profissional.
Num segundo momento, a reflexão diz respeito a maneira com que Roan trata a própria família. É aceitável ele trair a esposa e ao mesmo tempo ser um bom profissional? É possível ter dois comportamentos distintos? Saffyre acredita que não. Se Roan não se preocupa com a educação dos filhos, desrespeita a esposa, e guarda segredos, consequentemente essa atitude se reflete na maneira como age profissionalmente. Consegui entender seu ponto de vista e acredito que para alguns profissionais seja realmente difícil manter duas personalidades.
“E lá está ele de novo, aquele homem do ano passado, o homem frágil e justo que ela quase perdeu por causa de todas as suas dúvidas. O homem que a fez se sentir louca, má e tóxica.”
A autora detalha suas ações capítulo após capítulo, fazendo com que o próprio leitor crie uma imagem de Roan e decida se ele é ou não ético. E mais importante ainda, se aceitaríamos ser um paciente dele. Como leitora me senti desafiada a fazer esse exercício e após finalizar a leitura dar um veredicto (sem mais detalhes por conter spoiler). É preciso ler o livro para entender melhor.
A solidão de quem não encontra onde criar raízes
Desde criança, minha família mudou de cidade/estado diversas vezes. Aconteceu num mesmo ano estudar em duas escolas diferentes. Era preciso se acostumar com a nova casa, com outro sotaque, fazer novos amigos, e recomeçar tudo do zero. Foi divertido ter morado em lugares tão incríveis. Conhecer cidades que em outra ocasião talvez não teria oportunidade. Me sinto grata por tantas coisas bonitas, tantas experiências, e tanto do Brasil que conheci de perto. Isso de certa maneira moldou a minha personalidade.
Por outro lado, muitas vezes me senti solta, sem raízes, sem vínculo por nunca ter ficado muito tempo num mesmo lugar e ter tido tempo de criar laços duradouros. Sabe aquela sensação de ter morado a vida inteira na mesma rua e todos se conhecerem? Ou estudar com as mesmas crianças desde a pré-escola? Ou os pais serem amigos antes ainda das crianças nascerem? Então, eu não vivi isso. Sempre tive facilidade para deixar tudo para trás, recomeçar e ter uma vida completamente nova.
“Owen se deita na cama de solteiro. Ele encara o teto, dois metros e meio acima da cabeça. O vento que entra pela janela faz as teias de aranha dançarem lá em cima. É meia-noite. Ele está cansado, porém não consegue dormir.”
Owen e Saffyre trazem consigo essa mesma desconexão. Reconhecem a ausência de pertencimento, de sentir internamente que fazem parte da família na qual cresceram ou do lugar que conhecem. Ambos se sentem deslocados e têm necessidade de buscar uma validação externa. Owen se pergunta por que ninguém nunca gostou dele, se é por ser esquisito, meio nerd, ou não ter muito jeito com as pessoas.
Saffyre se sente claustrofóbica na própria casa. Não consegue dormir em sua cama e muitas vezes tem vontade de dormir ao relento. Além disso, acredita que seu tio estará melhor cuidando da própria vida ao invés de se preocupar constantemente com seu estado de saúde. Quando está muito triste arruma sua mochila e sai para caminhar sem destino certo.
“Talvez ele só tivesse adotado uma atitude errada, tivesse simplesmente dado atenção demais ao assunto todos esses anos. A resposta, percebe de repente, não é a guerra patética de Bryn contra o mundo – a resposta é fazer as pazes consigo mesmo.”
É numa dessas caminhadas que ela descobre os vários segredos de Roan. Mas esse é o menor dos seus problemas. Quanto mais investiga o que está por trás da vida perfeita do admirado psicólogo, mais se envolve numa trama ameaçadora.
A dualidade entre senso de justiça x busca por vingança
Lisa Jewell abordou o tema vingança em segundo plano, e mesmo assim ela consegue nos levar a questionar o quanto é certo fazer justiça com as próprias mãos. Quando a lei não é cumprida pelos meios legais, é permitido agir sozinho? Desde os 10 anos, Saffyre carrega dentro de si o incidente que manchou a sua inocência. Não houve culpados, não houve punição, não houve justiça. Apenas uma garotinha que passou a enxergar o mundo cinza e que encontrou na automutilação uma maneira de diminuir a dor.
Num determinado momento, ocorre um despertar. Saffyre sai do papel de vítima e assume a responsabilidade de se vingar do seu agressor. É uma decisão que divide opiniões. Se por um lado há quem concorde pois também faria o mesmo, de outro há quem acredite que cruzar a linha que separa uma vítima e a torna igualmente um agressor é muito tênue. Qual a diferença entre justiça e vingança? Se os culpados não sofreram é permitido agir ou fazê-los pagar de alguma maneira?
Apesar de Saffyre tomar uma decisão movida pelo seu sofrimento, creio ser possível manter a reflexão aberta sobre o assunto. O que você faria no lugar dela? Esperaria por um julgamento que talvez não acontecesse ou agiria movido pela emoção?
Essa parte do livro me fez relembrar The Mentalist. Na série, Patrick Jane, um vidente, usa as suas habilidades de maneira questionável e acaba perdendo sua esposa e filha quando aparece na TV menosprezando Red John, um serial killer que vinha sendo perseguido pela CBI. Ele, então, jura vingança. Ao longo da história, somos envolvidos pela sua personalidade e conseguimos entender seus motivos. Na série, assim como em Garota Invisível, fica no ar o questionamento quanto a ser certa ou não essa atitude.
Minhas impressões
Garota Invisível me surpreendeu de maneira positiva. Desde a ambientação, o desenvolvimento dos personagens, a identificação com algumas situações, até a construção da história em si. Achei interessante conhecer outros bairros de Londres e passear por ruas com casas tão bonitas. É um livro quase linear e mesmo assim mantém o leitor atento a cada página. Os capítulos são curtos o que torna a leitura mais dinâmica e envolvente.
“Deanna sorri para ele, um sorriso de cumplicidade, como se visse Owen, a solidão e o desespero dele e não se sentisse repelida. Como se tivesse conhecido alguém como ele antes.”
Quanto ao suspense, foi bem elaborado. Leio o gênero desde a adolescência e em nenhum momento imaginei que terminaria daquele jeito. Quando tudo começa a fazer sentido me perguntei como não tinha percebido alguns detalhes antes. O final é mais ou menos aberto e deixa o leitor pensativo quanto ao objetivo da autora. O que vem a seguir?
Por fim, o tema que se sobressai durante a leitura é sem dúvida relações familiares. E como elas podem definir quem nos tornamos quando adultos. É um livro que, mesmo após terminá-lo, as reflexões nos acompanham por dias. É surpreendente pensar que uma história assim possa ser simples e cheia de camadas ao mesmo tempo. Além de nos fazer questionar sobre ética, empatia e senso de justiça.
Muito obrigada à Livraria Leitura e a Editora Intrínseca pela oportunidade de conhecer mais um sucesso de Lisa Jewell e ler Garota Invisível. Gostei muito da experiência!
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