Guerra e Paz: o mundo ainda está em guerra — e Tolstói ainda nos ensina a buscar a paz

Ronaldo Gillet

Há obras que chegam ao leitor como quem bate à porta numa noite fria: discretas, mas carregando o peso de séculos. Quando abri a edição em quadrinhos de Guerra e Paz, publicada pela Editora Poseidon no Brasil, senti exatamente isso — a presença antiga de uma literatura que atravessou o tempo, que conheceu impérios inteiros (em seus auges e decadências), que viu o mundo reinventar a própria violência e, ainda assim, permanece sólida, como uma dessas árvores russas que fincam raízes no gelo e teimam em florescer.

Em Guerra e Paz, Tolstói não escreveu um romance, e sim um continente emocional. Vê-lo renascer pelas mãos e pelo olhar de Alexandr Poltorak e Dmitry Chukhrai é uma experiência que devolve à literatura algo às vezes esquecido: o espanto.

A graphic novel que ousou adaptar esse clássico — ainda desconhecido para muitos, principalmente aqueles que abdicaram da leitura em tempos de redes sociais voláteis como éter — não é apenas uma adaptação. É uma leitura do mundo. Um gesto de reverência. Um convite para que novos leitores, enfim, atravessem a porta entreaberta de um clássico absoluto, monumental, “grande demais”, agora traduzido em linhas, cores, pincéis, expressões que parecem respirar de maneira quase autônoma.

Nas primeiras páginas, os autores deixam claro o tamanho da ousadia. Foram anos de trabalho, idas e vindas com a Biblioteca Central Liev Tolstói, exposições, estudos, esboços, (re)leituras e revisões. Essa edição foi — sem exagero — gestada. E isso aparece dos rascunhos à composição das cenas, do cuidado com a linguagem visual à reconstrução das mansões aristocráticas, dos uniformes militares às pequenas hesitações nos rostos dos personagens.

Esse cuidado se sente, sobretudo, na humanidade. As páginas da HQ nos trazem olhares que denunciam o mundo interior dos personagens com mais força que muitos diálogos. Natasha é luz, ânimo e tragédia. Pierre é inquietação, tropeço, desconcerto. Andrei carrega, nos ombros tensos, o peso dos homens que esperam mais da vida do que a vida está disposta a dar.

O traço aquarelado, quase febril, tem algo de teatro como cores fortes, sombras vivas, sensação de movimento. A Rússia, nessa viagem em quadrinhos, também é persona. As ruas de Moscou brilham como se a névoa respirasse. Os salões parecem dançar. As carruagens deslizam como memórias em dissolução.

E em meio a tudo isso, há a guerra. E há a paz. Tolstói — esse gigante que incomodou a Igreja Ortodoxa, que pregou o pacifismo e sonhou com uma humanidade reconciliada consigo mesma – continua extremamente contemporâneo. Quando ele escreve que “não se resiste ao mal com a violência”, ele não fala apenas da Rússia do século XIX. Fala do nosso tempo, esse tempo que parece sempre à beira de um surto histórico, em que qualquer discussão vira trincheira, qualquer notícia vira conflito, qualquer diferença vira batalha.

A adaptação faz questão de destacar isso. Tolstói é universal, urgente e talvez por isso essa graphic novel soe tão necessária para tanta gente. A nona arte não simplifica Guerra e Paz e sim torna esse clássico bem mais acessível — no sentido mais bonito da palavra — abrindo, principalmente, portas. A literatura, afinal, não foi feita para ser encarada como um obstáculo, mas como um lugar onde o ser humano se reconhece. O trabalho de Poltorak e Chukhrai entende isso profundamente, preservando a filosofia, o caos militar, dramas familiares, cartas, receios, paixão juvenil e a fragilidade dos destinos. Tudo está ali — não como resumo, mas como essência.

Como toda boa crônica (brasileira, russa, universal) esta adaptação também olha para nós. Sim, para nós. Para o leitor contemporâneo, para os países que vivem suas próprias tensões, suas guerras internas e batalhas silenciosas. Ao folhear as páginas, senti aquele incômodo doce das obras que, de fato, querem dizer algo.

As cenas domésticas, a mesa de jantar, a carta aberta no sofá e a expressão atônita das personagens entregam como esta HQ é sobre como seguimos tentando viver enquanto o mundo insiste em desabar ao nosso redor — e há algo profundamente brasileiro nisso. Esse jeito de enfrentar tragédia com afeto, de carregar o humor no bolso, de insistir na esperança mesmo quando ela parece fora de moda. É por isso que essa adaptação conversa tão bem com o leitor tupiniquim.

No fim, essa Graphic Novel de Guerra e Paz é uma daquelas obras que consegue cumprir a sagrada missão de devolver Tolstói ao mundo, não como um monumento intocável, mas como uma voz viva, pulsante, que continua nos lembrando do óbvio que esquecemos todos os dias: a guerra é fácil; a paz é difícil. Mas é no conflito que mora o verdadeiro trabalho humano.

Fechei o quadrinho com a sensação de que esse quadrinho não é apenas um presente para quem ama literatura — e sim para quem ama o mundo, mesmo quando ele (o planeta e seus generais) insiste em se autodestruir.

Imaginei Tolstói, diante dessas páginas, sorrindo daquele jeito manso e ligeiramente melancólico que os biógrafos descrevem. Mesmo por meio das mãos de quem adaptou sua obra, esse mestre da literatura continua ensinando a humanidade a se examinar por dentro, onde a verdadeira batalha — e a verdadeira paz — sempre começa e (ou) recomeça.


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