A Loucura: lendas, conspirações e garotas desaparecidas nos subúrbios de Londres

Érika Monteiro

Dawn Kurtagich é uma autora conhecida em todo o mundo por seus thrillers de terror e horror psicológico. A Loucura é seu mais novo lançamento, inspirado por um clássico do terror gótico. Por sua mãe ser viajante e missionária, ela estudou em cerca de 15 escolas diferentes, entre a África do Sul e o Reino Unido. Hoje, é casada e mora no País de Gales, que é citado com maestria em seu livro mais recente.

A história

12 anos antes Mina, então com 17 anos, arrumou sua mala e fugiu para Oxford. Hoje Wilhelmina Murray é psiquiatra e atende pacientes do sexo feminino nas mais diversas situações. Violência doméstica, abuso, traumas, disputas de guarda, e outros casos igualmente delicados. A história tem início quando Renée, uma nova paciente, chega à clínica Brookfields, onde a médica trabalha.

A jovem foi encontrada nua vagando pelas docas nos arredores de Londres. Ela não sabe seu nome completo, onde estava, ou o que aconteceu. Mina, num primeiro momento, tenta manter uma relação de confiança com a paciente, porém a jovem se mostra muito abalada. É sensível à luz, suas respostas não tem nexo, é violenta, não sabe o que fazia, e um dos momentos mais delicados é quando precisa capturar insetos para se alimentar (uma das cenas mais marcantes).

“Puxo o zíper das botas, primeiro o esquerdo, depois o direito, e refaço o coque embutido simples, novamente úmido, preso com uma fivela. Essa sou eu, Mina Murray. Essa é minha vida. De novo e de novo. Segura. Conhecida. Previsível.”

Paralelo a isso, Mina recebe um e-mail de sua ex melhor amiga Lucy que mora em Tylluan, dizendo que se encontra muito doente e precisa de sua ajuda. A médica, que mora em Londres, reluta em voltar à sua cidade natal pois deixou para trás um passado que não gostaria de lembrar. Foram mais de 10 anos vivendo longe daquelas pessoas. No entanto, seu dever como profissional é ajudar independente quem seja.

Ela então arruma as suas coisas e viaja com destino ao vilarejo onde cresceu. Como se não bastasse a melhor amiga, que não conversa a anos, estar doente; sua mãe guarda mágoas profundas por ela ter ido embora 12 anos antes sem olhar para trás ou dar qualquer explicação. Jonathan, seu namorado de adolescência, além de um amor antigo, guarda uma tristeza sem tamanho em seu coração.

“O apartamento está fresco e tranquilo, o frio do outono penetrando sob o batente das portas e a moldura das vidraças. Eu me enfio tremendo em um suéter de lã e acendo a lareira a gás na sala de estar em conceito aberto. Não é o caminho rústico onde cresci, mas o fogo ainda me acalma.”

Mina precisa deixar os sentimentos de lado e fazer o possível para descobrir o que está acontecendo com Lucy. Para isso, ela aparece repentinamente na casa de sua mãe. Será que as duas estão prontas para conversar? Ela será perdoada por anos de silêncio? E Jonathan, seu verdadeiro amor, esqueceu aquela adolescente que partiu seu coração?

Ao dar início às investigações sobre a doença de Lucy Mina descobre que pode ter alguma relação com sua paciente de Londres. Isso a leva a teorias da conspiração, hackers, laudos médicos, fóruns, dark web, casa noturna, bruxas, lendas, folclore galês, um castelo sinistro, uma organização poderosa, e descobrir que o pouco que sabe é apenas a ponta do iceberg. Há muito mais nas sombras daquele pequeno vilarejo esquecido, parado no tempo, do que ela jamais imaginou.

Os personagens

A autora construiu personagens bem marcantes e inesquecíveis. Ou seja, é possível visualizar cada um deles com sua personalidade única e trejeitos. Desde a adolescente Rhiannon, o quieto Jonathan, a hacker Singer, a pálida Lucy, ou a confusa Renée. 

Num primeiro momento quem rouba a cena é Renée. Dawn conseguiu criar com maestria as cenas de tensão entre a garota e Mina. O surto psicótico pareceu tão real que é possível se imaginar naquela sala no escuro observando as feições, os gritos e ataques com muita nitidez. Não à toa é um dos momentos em que se destaca a escrita da autora.

“Ela abre o punho, revelando os corpos partidos de várias moscas, aranhas e besouros. Depois, enquanto observo, a jovem os enfia na boca e mastiga os insetos com uma expressão de tamanho êxtase que quase me faz perder a compostura.”

Além dela, Mina também merece atenção. As cenas em que sofre ataque de pânico, hiperventilação, falta de ar, ou em que precisa tomar banho e se lavar várias e várias vezes cria no leitor uma certa tensão e empatia. Ao mesmo tempo que pensamos em como ajudá-la, vem a curiosidade para saber como ela conseguirá sair daquele momento.

Quem assistiu The Big Bang Theory vai identificar rapidamente alguns comportamentos dela com os do Sheldon, como repetir palavras, contar um número específico, manter as mãos sempre limpas, ter medo dos germes, e o mais característico evitar contato físico com as pessoas. Em A Loucura é muito mais acentuado. Quando a autora descreve, por exemplo, as cenas em que as mãos pinicam, coçam, passa pelo pescoço e parece trancar a respiração, é como se estivéssemos vivenciando isso junto com a personagem.

“Kensington é agradável a essa hora da madrugada. O sol só vai nascer dentro de uma hora, mas o céu já está amadurecendo como uma toranja suculenta.”

Jonathan, apesar de aparecer pouco, é um personagem que desperta muitas reflexões; ainda mais em pessoas que tiveram seus corações partidos ou foram abandonadas por alguém. Seu olhar perdido, o peso nos ombros, o semblante triste, o silêncio, a transformação do adolescente sorridente e cheio de energia no adulto perdido são características que o aproximam do leitor. É fácil se reconhecer na mesma situação.

A escrita da autora

Como disse anteriormente, Dawn Kurtagich tem um jeito único de escrever. Desde o prólogo ela consegue manter o leitor curioso, imerso, e envolvido em buscar respostas a cada capítulo. Os momentos de suspense são capazes de nos fazer sentir falta de ar tal como se estivéssemos vendo a cena de um filme ou se fizéssemos parte.

“Mostro a ursinha de pelúcia rosa que comprei em uma lojinha enquanto estava de passagem por Birmingham. Ela tem a orelha costurada para baixo em um padrão xadrez que faz com que pareça carrancuda. Lucy dá um gritinho de alegria infantil.”

No entanto, o que me conquistou foi a maneira como ela descreve a natureza. Um período da história acontece durante o outono e as cenas são muito reais. As cores, o vento, a sensação de frio, o pôr do sol, a chuva fina batendo no vidro, a sensação de andar na floresta, o balançar das folhas, acender a lareira, tomar um chá quentinho, se aconchegar numa poltrona confortável, esquentar as mãos numa fogueira na praia, são sensações que ficam marcadas por bastante tempo após a leitura.

Confiança paciente x médico

Quando Renée chega à clínica ela parece um bichinho que foi maltratado. Assustada, sem entender o que está acontecendo, e muito arisca. Mina ao invés de diagnosticá-la numa leitura fria, apenas observa a paciente tentando criar uma relação de confiança. Mostrar que ali é um lugar seguro e que terá o tempo necessário até estar pronta e contar o que a médica precisa saber.

São necessárias duas sessões para que a paciente saia da posição de ataque e perceba que ninguém vai machucá-la. O momento em que Renée oferece comida à Mina mostra o quão frágil é a saúde mental de uma pessoa. É preciso um trabalho muito sensível para se aproximar, esperar o paciente confiar, e só então tentar ajudar.

A médica, por trazer consigo seus próprios traumas, consegue ter a empatia e paciência necessárias para esperar. Ela sabe que algumas dores são difíceis demais de serem expressadas. Muitas vezes nem a paciente sabe onde realmente está doendo. Então simplesmente aguarda até que estejam prontas para se abrir.

John Seward, seu colega de trabalho, segue uma linha de atuação completamente diferente. No caso de Renée, por exemplo, não se importou por ela ter hipersensibilidade à luz, em alguns momentos ficou irritado por ela repetir palavras sem contexto e não responder às suas perguntas de maneira objetiva, e antes que pudesse compreender melhor o quadro, ele receitou medicação. O que foi prematuro e irresponsável na opinião de Mina.

Essa situação acontece com frequência no mundo real. Onde médicos atendem diversos pacientes diariamente e muitas vezes não há tempo hábil para conhecê-los melhor ou atender com mais empatia. É possível se aproximar do paciente e não se deixar afetar por seus problemas?

Sara Sidle, de CSI, é um exemplo de que a empatia em excesso pode prejudicar a vida pessoal. Em muitas situações, quando a vítima é mulher, o caso se torna prioridade. Sara deixa de ver as evidências com clareza e busca justiça antes de qualquer coisa. Num dos diálogos com Grissom, ele explica que para fazer um bom trabalho é preciso certa distância. Mas ao longo da série percebemos que para ela isso é quase impossível pois sua empatia é um traço forte, então acaba se envolvendo emocionalmente.

Relacionamentos que se dissolvem com o tempo

Vanessa Murray, mãe de Mina, é conhecida como a bruxa da colina no vilarejo onde moram. Entre lendas, folclore, e muitas crendices, a adolescente sempre se viu obrigada a seguir todas as tradições da família mesmo que não acreditasse nelas. Desde criança sempre acreditou que eram apenas histórias contadas passadas de geração em geração.

Numa noite, quando Mina tinha 17 anos, ela arruma as malas e vai embora de casa. Aquela decisão muda sua vida para sempre. Van nunca a perdoou por deixar todos pensando que teria sido sequestrada ou que o pior tivesse acontecido. Durante esse tempo elas trocaram algumas ligações, mas nada afetuoso.

Agora, 12 anos depois, Mina está de volta à soleira da casa onde cresceu. Enfrentar sua mãe será um dos seus maiores desafios. Mesmo com todas as boas intenções da filha, a bruxa se mostra irredutível. A mágoa de Vanessa é pela filha ter ido embora, mas também por negar as suas origens. Zombar da história de seus ancestrais e dizer ser mais fiel à ciência e às evidências.

“Quando acordo de manhã, estou me sentindo mais leve do que nunca, ainda que esteja no meu quarto de infância que não mudou desde que fugi da cidade aos dezessete anos. Pelo menos mamãe não o modificou. Eu me espreguiço de forma luxuriosa, contemplando as partículas de sol através das frestas das cortinas.”

Por um lado, Mina desdenha dos rituais realizados por sua mãe. Assim como tudo o mais que faz parte das crenças daquele povoado. Ela não acredita nos chás, nas orações, e nada que não possa ser provado cientificamente. Como médica ela se orgulha disso.

Agora, com a doença de Lucy, elas precisam deixar as diferenças de lado e unir forças por um bem maior. Será que isso vai aproximá-las ou deixar mais evidente o quanto são diferentes?

Enquanto lia essa parte da história refleti sobre a relação com a minha mãe. Minhas irmãs e eu tivemos uma educação católica. Ir à missa aos domingos, fazer catequese, ser coroinha, grupo de adolescentes, eram tarefas que faziam parte daquele universo. Aprendemos sobre os mandamentos, obedecer pai e mãe, não contar mentiras, fazer o bem ao próximo, e buscar ser um bom exemplo.

Cresci com a ideia de que Deus poderia me castigar caso eu não fizesse tudo certo. Ideia essa ensinada pela minha mãe e pela igreja. Mesmo depois de sair de casa essa voz é constante em minha mente. Assim como tinha receio de fazer coisas erradas, também tinha de me abrir com a minha mãe e ser julgada. Lembro de uma vez quando tinha uns 12/13 anos, peguei a bicicleta da minha amiga emprestada e fui andar. Como o freio era diferente eu não sabia como parar, então caí e machuquei os dois joelhos. Fiquei com muito medo de voltar para casa e levar uma bronca.

“O ar gelado da manhã bate em meu rosto e meus pulmões, e a geada está pesada e branca, cobrindo as sebes. É meu momento favorito do dia, as horas antes do frescor desaparecer na agitação de uma nova segunda-feira.”

Era normal esse sentimento? Talvez. Por outras situações semelhantes. O fato é que desde que me lembro, a relação com a minha mãe sempre pareceu ter um muro, mesmo que invisível algumas vezes. As minhas amigas eram mais comportadas, mais organizadas, mais estudiosas, e eu precisava me adequar constantemente. A relação dela com outras meninas da minha idade sempre foi melhor do que a nossa dentro de casa. Isso com o tempo causou um certo distanciamento. Ela era íntima e ouvia os segredos ou problemas de outras garotas, mas o mesmo não acontecia comigo.

Percebi o mesmo com Mina, Van e Lucy. Lucy, sua melhor amiga, se abria mais fácil com sua mãe e tinha mais confiança nela, do que na própria Mina. E Van considerava Lucy uma boa menina, desejando que a filha fosse tal como ela. Essa é uma frustração que muitas filhas que foram comparadas ao longo da vida trazem dentro de si. Um ponto interessante é perceber que após os filhos serem adultos os pais querem criar essa ponte novamente, no entanto, não há como atravessá-la.

“Quase me virei e disse alguma coisa. Me desculpa, talvez, mas mamãe estava de costas, e saí correndo como uma covarde. As paredes entre nós são tão altas que nem consigo mais vê-la, tão grossas que acho que ela não consegue me ouvir chamando seu nome.”

Um vídeo recente no Tiktok discute justamente isso. Como ter uma relação saudável com os pais na vida adulta sendo que nunca houve uma relação antes? Quando Mina retorna para casa traz consigo esse medo. Além de Lucy e Van serem próximas, a mãe sempre elogiava a melhor amiga como se ela tivesse mais qualidades do que a própria filha.

Num fórum recente encontrei uma dúvida semelhante. Diálogos parecidos com esses eram bem comuns quando eu era adolescente:

“- minha filha é bem imatura emocionalmente, mas você é tão madura pra sua idade.”

“- Eu amo como tudo aqui tá limpo e organizado, minha filha é super preguiçosa e bagunceira.”

Hoje, já adulta, entendo que deve ter sido difícil criar três filhas, tentar dar o melhor, educá-las, mantê-las no bom caminho, e garantir que tudo desse certo. Ainda mais estando longe de toda a família. Muitas vezes não sabendo a quem pedir ajuda, ou sem saber qual a melhor decisão, acredito que muitas situações aconteceram na tentativa e erro.

Mesmo assim ainda hoje me vejo fazendo pequenas comparações com pessoas que possam ser melhores do que eu na visão da minha mãe.

Há segundas chances para o amor?

Além do relacionamento com a mãe, Mina precisa enfrentar os fantasmas que pairam entre ela e Jonathan. Quando decidiu ir embora, eles namoravam há dois anos. Então foi um choque muito grande para o rapaz e ele nunca se recuperou.

Quando Mina sai para correr de manhã cedo, sua mãe pede que compre mantimentos no mercado. Ao abrir as portas com os produtos nas mãos ela esbarra sem querer num homem alto, loiro e muito forte. Num primeiro momento não reconhece, porém o olhar confirma, é Jonathan. O adolescente que conheceu está tão diferente. Ela mal pode acreditar que está diante do amor de sua vida. Ele, no entanto, parece distante. O encontro foi um susto para ambos.

Em outro momento eles se encontram novamente e Mina pergunta se podem ser amigos. Ele responde que não pode ser amigo de alguém que partiu seu coração. Que cena mais triste! (sem spoilers).

“Nunca houve ninguém desde Jonathan. Mesmo agora, essa ferida em particular ainda dói. Perder Lucy e Jonathan de uma vez foi a dor que definiu minha existência.”

Ter o coração partido é uma das maiores dores que uma pessoa pode sentir, seja homem ou mulher. No entanto, quando isso acontece na adolescência, é ainda mais doloroso porque parece que o mundo se torna preto e branco. A dor faz abrir uma lacuna no chão e temos a sensação de que seremos consumidos a qualquer momento. Cada parte do corpo dói.

Tive um namoro que durou menos de um ano, foi ao mesmo tempo o mais marcante e mais doloroso. Abrir o coração, deixar alguém se aproximar, confiar, e ter sonhos com essa pessoa é uma das melhores sensações quando estamos apaixonados e podemos viver um relacionamento. É fácil se sentir flutuando quando namoramos uma pessoa que consideramos especial.

“Em uma noite gelada de praia, no entanto, era o que fazia as festas parecerem seguras e prósperas. Em um vilarejo sem nada localizado em canto nenhum, ele fizera a praia de Tylluan parecer nosso segredo. Nossa casa de veraneio, só que sem uma casa.”

Mas por alguns motivos não deu certo e terminamos. Até hoje não senti dor semelhante. É um vazio que não se preenche. Se ele cogitasse sermos amigos, creio que minha reação seria a mesma de Jonathan. Mesmo hoje após ter conhecido outras pessoas é como uma cicatriz sensível. É interessante pensar como algumas pessoas se tornam inesquecíveis.

No entanto, lembro com carinho de todos os bons momentos que tivemos. Os lugares que conhecemos, os passeios que fizemos, as festas com amigos, idas à sorveteria (que eu amava!), as músicas que ouvimos juntos, os jogos de videogame, as séries. É uma doce lembrança que hoje faz parte de uma página amarelada do meu diário. Quando leio me recordo da menina que costumava ser e percebo o quanto amadureci.

Jonathan e Mina terão muito o que conversar. Ela guarda muitos segredos, ele uma vida inteira de mágoas. Será que o destino dará uma segunda chance?

A profundidade das amizades feitas na infância

Desde sempre fui uma criança que amava brincar na rua, subir em árvores, andar de bicicleta, nadar na piscina, rodeada o tempo todo. Minha família se mudava com frequência, então quando chegávamos numa cidade diferente, era preciso recomeçar. Escola, amizades, costumes. Teve uma cidade no interior do Paraná que foi especial.

Esse lugar era cheio de crianças de todas as idades, um gramado imenso, pés de café, pés de manga, e a tranquilidade das ruas de um bairro pequeno. Depois da escola era comum brincar de bets, queimada, esconde-esconde, ou subir no pé de manga para pegar frutas lá no alto. Nessa época minha melhor amiga era a Aline, sempre gostei muito dela. Cabelo castanho liso, olhos sorridentes e duas covinhas que a tornavam ainda mais simpática.

Brincávamos nos fundos da casa dela, onde tinha um pé de limão e comíamos com açúcar (alguém faz isso ainda hoje?). Às vezes era manga, em outras era limão. Lembro da minha mãe dizer que ficaríamos sem sangue de tanto que chupávamos limão (era muito engraçado).

“Os dias eram frios, mas nenhuma de nós tinha lugar melhor para estar. Sonhávamos acordadas na maior parte do tempo, o assunto sempre o mesmo: escapar daquela cidade de fim de mundo.”

Um pouco mais pra frente no tempo, se mudou uma menina de cabelo preto liso, um pouco mais séria do que eu, seu nome era Élida. Éramos as crianças mais “velhas” da rua. Enquanto eu vivia descalça, descabelada, correndo e brincando; ela gostava de sentar na calçada e ficar conversando. Costumava dividir o tempo entre ser mais bagunceira quando estava com outras crianças, e ser mais mocinha e comportada quando estava com ela. Foi estranho perceber que alguém tão diferente podia ser minha amiga. Aquele poste que iluminava as nossas conversas noturnas guardou tantos segredos. Sinto saudade do sorriso sério dela.

Acompanhando a amizade de Mina e Lucy desde que eram crianças me permitiu fazer uma viagem à minha infância. Relembrar as minhas amigas, os lugares onde cresci, todas as coisas que aconteceram e me tornaram quem sou hoje. Se alguma delas estivesse com problemas, faria o mesmo que Mina, viajaria para ajudá-las e vê-las bem novamente.

Quando Mina foi embora sem dar explicações, além de magoar todos que a amavam, deixou também uma ferida no coração da amiga que a considerava uma irmã. Lucy ligou várias e várias vezes, tentou encontrá-la, e um dia, simplesmente desistiu. Mas quando fica doente, num momento de fraqueza, é de Mina que ela lembra e busca sua ajuda.

“Tenho uma carreira de sucesso, tenho uma nova paciente que precisa de mim, tenho tudo o que sempre quis. Tudo pelo qual trabalhei muito… E, na altura em que o trânsito começa a andar, sei que vou deixar todas essas coisas de lado para ajudar alguém que abandonei. Alguém que me amava e que confiava em mim. Alguém que deixei para trás…”

Após tantos anos de silêncio, Mina, mesmo relutante, arruma suas coisas e dirige rumo a Tylluan para tratar da amiga. Esse é um daqueles momentos que enchem o nosso coração de esperança e mostra que algumas amizades resistem ao teste do tempo.

Um ponto interessante que paira no ar é o fato daqueles amigos que nos conheceram numa determinada época e quando nos reencontram são resistentes às mudanças. Quando Mina percebe que Lucy é tão rica que usa louças chiques, ela se pergunta se a amiga esqueceu os dias de adolescência em que bebiam vinho barato roubado de uma vendinha na cidade. É um pouco semelhante aos nossos pais, depois que saímos de casa eles estranham hábitos novos que adquirimos.

“Decido que é melhor me juntar a Lucy lá embaixo e deslizo para o chão também. Lucy se senta, encostada na base do sofá, tira os sapatos e coloca os pés com meias no meu colo, assim como costumávamos fazer. Como se nada tivesse mudado, e eu me sinto… segura.”

Essa viagem ao passado mostra que o passar dos anos não apaga a criança que trazemos dentro de nós. Quando sentimos saudade, ou uma certa melancolia, é só fechar os olhos e encontrá-la novamente. A autora de maneira singela soube construir uma relação muito estreita entre as duas. Enquanto a história evolui é fácil se reconhecer numa ou noutra. Tão diferentes, mas ao mesmo tempo, sentindo que fazem parte da vida uma da outra.

A mente do psiquiatra precisa ser saudável?

De vez em quando surgem pela internet alguns questionamentos como “um nutricionista pode estar acima do peso?”, “um médico pode fumar?” ou ainda “um fisioterapeuta pode ter problema na coluna?”. Todas essas perguntas têm algo em comum: o profissional não seguir suas próprias orientações o torna menos eficiente? Essa pergunta é respondida há alguns anos por pacientes e profissionais das mais diversas áreas.

Mina sofreu um trauma muito forte antes de deixar Tylluan para trás. Isso mudou completamente a sua rotina e comportamento. Ela acorda numa determinada hora, conta os passos da cama até o banheiro, prepara a mesma comida, toma o mesmo chá, lava o banheiro todos os dias, usa qboa nas mãos, no pescoço, nos pés, para garantir que tudo esteja limpo, não anda descalça, não toca nas pessoas, e caso aconteça algo fora do planejado ela repete o ritual. Além disso, tem síndrome do pânico, ansiedade, e traumas do passado.

É possível alguém assim atender pacientes com as mesmas características e oferecer um bom tratamento? Fica o questionamento.

Há dois pontos a serem analisados. O primeiro diz respeito às suas competências enquanto médica. Além de ter estudado medicina durante vários anos, e ter especialidade, ela conhece todos os sintomas, sabe como funcionam os gatilhos, e consegue lidar melhor com possíveis crises de seus pacientes. Compreender o que cada mulher está sentindo quando chega ao consultório a faz mudar de postura e tentar abordagens que mostram melhores resultados. O que não acontece com quem não tem experiência ou vivenciou um trauma.

O segundo ponto defende que somente um profissional bem consigo mesmo pode oferecer um tratamento eficiente. Ou seja, um médico com uma boa saúde mental será melhor para seus pacientes. Ao manter certa distância, é possível agir de maneira racional, ponderada e não se deixar envolver pelos relatos porque não há traumas em comum.

Ao trazer dois médicos com personalidades distintas, a autora permite que o leitor reflita e chegue a uma conclusão por si mesmo. Enquanto paciente, qual médico você escolheria?

Curiosidades durante a leitura

Trilha sonora

Ler enquanto ouve uma música indicada pela própria autora é uma das experiências mais incríveis para todo leitor. Em A Loucura não é diferente, Dawn Kurtagich trouxe Born Without a Heart, na voz rouca e inconfundível da cantora marroquina-canadense Faouzia.

“… muitas vezes o trauma das mulheres é tratado como uma espécie de loucura, algo que adquire vida própria, de forma a exonerar a sociedade por tê-las deixado dessa maneira. Watched you break me, now you blame me…”

Chá Darjeeling

Quando leio um livro em que a história é ambientada na Inglaterra já fico esperando algum personagem aparecer oferecendo esse chá. Ele é uma variedade de chá preto da região de Darjeeling, no noroeste da Índia, conhecida por seu sabor único e aroma floral. Vi em outros livros que tem também chás brancos, verdes e oolong. Descobri recentemente que vende no Brasil, uma boa opção para acompanhar a sua próxima leitura.

O Galês

Outra curiosidade sobre esse livro é o idioma galês. A autora no decorrer da história trouxe diversas expressões e palavras. Achei tão interessante que pesquisei o significado de algumas delas.

Hiraeth – saudade, mas tem um significado mais profundo e abrangente. Representa um sentimento de melancolia, anseio e nostalgia pela ausência de algo ou alguém, frequentemente associado à identidade cultural e ao lar. 

Diolch a cymerwch attoch – obrigado, leve pra você.

Nos Galan Gaeaf – noite de halloween.

Tylwyth Teg – fadas.

Cewri – gigantes.

Ysbrydnos – noite espiritual.

Fish and chips

Quem já leu A cidade dos Fantasmas lembra que Cassidy vai a um lugar que ela gosta muito e come esse prato, que é a combinação de peixe empanado frito com batata frita. Semelhante a porção de frango que é bem comum aqui no Brasil.

Fish and chips, assim como o chá Darjeeling, é bem comum aparecer em histórias ambientadas em Londres e Escócia como no livro de Victoria Schwab.

Minhas impressões

Foi um dos melhores livros que li nos últimos meses. Inteligente, bem estruturado e envolvente. Esse é meu primeiro contato com a autora e fiquei fascinada por sua escrita. Quando li o prólogo senti um frio na espinha e criei grandes expectativas, que foram satisfeitas conforme a leitura evoluía.

O fato de o livro ser dividido em três partes e exigir atenção do leitor quanto aos detalhes foi bem criativo porque permite criar teorias, imaginar o que está acontecendo, e tentar descobrir quem está por trás de todos os acontecimentos.

O mistério envolvendo as garotas desaparecidas merece um elogio à parte. Como a autora conseguiu pensar nos pormenores? Cada cena, cada pista, a descrição dos lugares, criou uma tensão tão grande, que em vários momentos me senti com falta de ar imaginando o que mais poderia dar errado e se alguém viria para salvá-las.

“Saudade é uma palavra em português que encapsula o sentimento de profunda nostalgia, melancolia e a falta de algo ou alguém que amamos, mas que talvez nunca mais tenhamos conosco ou vejamos outra vez.” (trecho favorito)

Falar um pouco sobre a cultura galesa foi bem marcante. Essa é a primeira história ambientada no País de Gales que leio, a autora ter trazido grimório, castelos, florestas, criaturas da noite, lendas, o folclore daquele vilarejo, foi uma experiência nova pra mim.

O mais impressionante é como a história foi guiada por um caminho e quando pensei que o mistério estava resolvido, apareceram novas evidências e mudou completamente tudo. Depois, quando criei uma segunda teoria, a autora surpreende de novo. E quase no final mais uma reviravolta. Dizer que o final foi inesperado é redundante, mas foi espetacular!

Outro detalhe que fez toda diferença na experiência enquanto leitora foram os recursos visuais criados como mensagens de bate-papo, e-mails, cartas, prontuários médicos, folha de livro antigo, textos escritos à mão, tudo isso permitiu uma imersão na história e tornou os acontecimentos mais reais. Inclusive os feitiços da bruxa da colina.

Uma história digna das telas do cinema com direito a espionagem, teorias da conspiração, hacker, invasão de propriedade, cenários outonais, e que vai conquistar tanto os fãs de Harry Potter quanto de Crepúsculo (sem mais spoilers, leiam para entender!).

Muito obrigada à Livraria Leitura e Harper Collins pela oportunidade de conhecer Dawn Kurtagich e ler A Loucura. Amei a experiência!

Livro “A Loucura” aberto, laptop com fones de ouvido, pedaço de bolo e um copo de suco.

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