Cama de Gato: A arte absurda e genial de Kurt Vonnegut em tecer o caos

Nada é gratuito neste livro. Vonnegut entrelaça sátira, ficção científica, niilismo e humor ácido para falar de ciência, religião e da estupidez humana com uma maestria única. Se Matadouro-5 é seu grito contra a guerra, Cama de Gato é o riso amargo diante do abismo — e que riso.
O narrador, John (ou Jonah), começa querendo escrever sobre o dia do lançamento da bomba atômica, mas logo se perde nos rastros do Dr. Felix Hoenikker e de seus filhos. O foco se dissolve, como a própria ideia de sentido no universo de Vonnegut.
Hoenikker, inventor da bomba e do Gelo-9, é um cientista brilhante e emocionalmente ausente, movido apenas pela curiosidade. Sua indiferença à moral ou às consequências das próprias criações expõe uma crítica feroz à ciência desumanizada, onde genialidade e irresponsabilidade caminham juntas.
Após sua morte, os filhos de Hoenikker herdam o Gelo-9 — uma substância com potencial para congelar o planeta inteiro — e lidam com esse poder devastador de formas distintas. Frank negocia sua parte por status e proteção política; Angela busca afeto e reconhecimento em troca da sua; e Newt observa tudo com a lucidez melancólica de quem já desistiu de procurar sentido. É ele quem cita a metáfora central do livro, o jogo “cama de gato”: “Não há gato e não há berço. Só fios entrelaçados entre os dedos de alguém.” A frase encapsula a crítica de Vonnegut às estruturas criadas por nós — ciência, religião, política — que prometem sentido, mas só entregam ilusão.
A fé e o poder dos mitos
Dessa lógica nasce o Bokononismo, religião fictícia que se assume, desde o início, como mentira. Suas fomas — mentiras sagradas — são falsas, mas úteis para suportar a vida. “Nada do que está neste livro é verdade”, diz sua primeira frase. E, mesmo assim, é seguido. Vonnegut não ridiculariza a fé; ele entende o poder dos mitos como forma de preencher o vazio.
San Lorenzo, ilha fictícia onde se desenrola boa parte do romance, é o microcosmo do absurdo: um território miserável, dominado por uma ditadura e por uma religião proibida, mas amplamente praticada. Nesse cenário, o autor critica a geopolítica da Guerra Fria sem citar nomes. O Gelo-9, invenção criada a partir do pedido de um militar “cansado da lama”, simboliza o ápice da corrida armamentista: sua simples existência já é uma ameaça.
A mídia e o mundo que consome desastres
A mídia também não escapa do olhar cínico do autor. A crítica aqui é sutil, mas certeira: em um mundo que consome desastres como entretenimento, até o fim do mundo pode virar uma manchete esquecida no dia seguinte.
E, mesmo assim, Vonnegut jamais é pretensioso. Ele fala do abismo com leveza. Seus capítulos curtos, quase aforismos, misturam filosofia e timing cômico. Ele não oferece respostas — apenas perguntas certeiras, seguidas de uma piada que tira o chão do leitor. A genialidade está aí: no sarcasmo que revela mais do que qualquer tratado, no absurdo que espelha nossa realidade melhor que o realismo.
Em um mundo ainda obcecado por controle, progresso técnico e verdades absolutas, Cama de Gato é um lembrete incômodo — e necessário — de que talvez tudo não passe de fios entrelaçados entre os dedos de alguém. Não há gato. Não há berço. Só a nossa ânsia por sentido, tropeçando nas próprias ilusões.
6 comentários em “Cama de Gato: A arte absurda e genial de Kurt Vonnegut em tecer o caos”
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Rodrigo Sande
Arrasou!
Mais um livro que está na fila de leitura e com seus comentários só estimulam meu interesse… agradeço por fazer essa análise tão precisa
Livraria Leitura
Que demais! 😍
JULIANA COUTINHO SANTANA
Eu estou absolutamente impactada depois de ler essa resenha. Já me peguei refletindo sobre tanta coisa… Sinto que esse livro vai ser um daqueles tapas que precisamos levar em algum momento da vida.
Livraria Leitura
Sensacional! 🤩🤝
Brenda Evelyn
Eu sempre termino de ler suas resenhas com vontade de pegar o livro para ler. Nossa, eu amei.
Livraria Leitura
Incrível! 😎