Segredos e Mistérios por Trás das “Casas Estranhas” do Japão

Casas Estranhas, publicado pela Intrínseca, é o mais novo lançamento de Uketsu, autor e youtuber conhecido mundialmente por suas histórias de mistério e terror e por seus vídeos esquisitos com milhões de visualizações.
O livro acompanha um autor, que gosta de histórias de fantasmas e experiências estranhas; e seu melhor amigo Kurihara, especialista em arquitetura e fã de terror e mistério. Os dois vão unir seus conhecimentos para descobrir o que há por trás da planta baixa de uma linda casa que está à venda, porém o futuro comprador descobriu um espaço misterioso com parede dupla entre a cozinha e a sala de estar.
“… a expressão ‘espaço misterioso’ tem um quê de sobrenatural e desperta mesmo um grande interesse.”
A estrutura de Casas Estranhas é em forma de diálogo, como se estivéssemos participando da conversa entre eles e os outros personagens. A leitura flui de maneira simples, dinâmica e rápida em alguns momentos. O mistério vai se tornando mais intenso, o que deixa o leitor curioso quanto ao que pode acontecer no capítulo seguinte.
Vem comigo saber um pouco mais sobre essas casas estranhas japonesas.
A história
Casas Estranhas tem início quando o autor é procurado por Yanaoka, um antigo conhecido, que está prestes a ter seu primeiro filho. Em vista disso, ele pretende comprar uma casa. Essa busca o faz encontrar um imóvel de dois andares numa área privilegiada de Tóquio e com muito verde ao redor.
No entanto, ao analisar a planta baixa da casa, descobre vários detalhes inusitados. Portas duplas, quarto sem janela, banheiro aberto sem parede, banheiro sem janela, cômodos com disposição esquisita, despensa na garagem, e um espaço misterioso sem portas ou janelas e que ninguém sabe explicar para que serve ou como acessar.
“Isso vai muito além de ‘superproteção’. Sugere que os pais queriam ter total controle sobre a criança. Talvez ela estivesse sendo mantida em cativeiro nesse quarto.”

O autor se reúne com Kurihara e começam a estudar cada detalhe. Por que há muitas janelas, enquanto alguns cômodos não têm nenhuma? Por que o quarto da criança fica isolado por duas portas trancadas? Por que o armário do quarto da criança tem ligação com o espaço misterioso da sala? Por que há dois banheiros tão diferentes? Após observar com atenção, eles levantam a teoria de que a criança ataca as visitas, e aquele lugar estranho pode ser a passagem secreta para a família se desfazer do corpo.
Enquanto os dois seguem discutindo sobre quais segredos aquela casa misteriosa esconde, um corpo é encontrado no bosque. Detalhe: está sem a mão esquerda. Isso faz com que Yanaoka desista de comprar a casa. Mesmo assim os dois amigos continuam intrigados com as esquisitices daquela planta baixa.
O autor decide, então, escrever um artigo sobre aquela casa levantando alguns questionamentos. Quem sabe algum leitor tenha alguma teoria que explique tudo aquilo. Mas sem revelar detalhes que facilitem a sua identificação. Alguns dias após a publicação o autor é procurado por Yuzuki Miyae, possível esposa de Kyoichi Miyae, o homem que foi encontrado no bosque dias antes.
“Por mais que as duas pessoas desse quarto sejam casadas, elas não devem querer ser vistas saindo do banho. Deviam ser muito ‘íntimas’. Esse desequilíbrio entre um casal ‘íntimo’ e uma criança ‘em cativeiro’ é meio assustador…”
Yuzuki conta que reconheceu a casa pela planta baixa. Durante a conversa ela mostra o desenho de outra casa, porém em Saitama. Ambas possuem as mesmas características, no entanto, nessa há uma janela interna entre dois cômodos, não há porta para o jardim, pode haver um porão próximo ao closet, e foi construído um cômodo no formato de triângulo sem um motivo aparente.
Conforme a conversa avança, Yuzuki diz ter mentido para o autor. Quais mentiras ela contou? Qual o seu real interesse na casa estranha de Tóquio? Por que tem curiosidade em saber o paradeiro da família que morava ali? Após contar sobre as novas descobertas ao seu amigo, eles se reúnem novamente com Yuzuki para levantar mais informações. Surge um novo detalhe: há uma terceira casa igualmente estranha.
“O motivo disso é justamente a chave para desvendarmos o mistério desse acidente e dessa casa.”
A tarefa agora é descobrir por que aquelas casas foram construídas de maneira tão peculiar.
Os personagens
Apesar de o livro ser relativamente curto, a história nos apresenta alguns personagens marcantes. Kurihara é um deles. Como especialista em arquitetura, ele é peça fundamental no momento de desvendar o segredo por trás de cada planta baixa. Por ser fã de terror e mistério, ele cria diversas teorias e faz o leitor se questionar se é possível ou ele está apenas usando muito a imaginação.
De acordo com ele, a criança matava as visitas, mas qual seria o propósito? Tudo precisaria acontecer num cômodo sem janelas para não chamar atenção dos vizinhos. Talvez por esse motivo outros cômodos da casa tenham tantas janelas, é um truque psicológico usado para mostrar que a casa é normal. Esse poderia ser o motivo da quantidade extra de janelas.
“A criança o esfaqueia inúmeras vezes pelas costas, e o sangue escorre de forma abundante. Sem nem se dar conta do que aconteceu, o convidado cai morto no chão. Ou seja, essa casa foi construída para cometer assassinatos.”
Grande parte da história se desenvolve devido às perguntas e suposições feitas por Kurihara. Num certo momento, porém, percebemos que algumas delas fazem mais sentido do que imaginávamos e a leitura toma um novo rumo porque mergulhamos junto com os personagens na busca pela verdade.
Outro personagem que aguça a nossa curiosidade é Yuzuki. Que motivos ela teria para mentir dizendo ser esposa de Kyoichi Miyae? No entanto, o fato de ela ter a planta baixa da casa de Saitama faz com que Kurihara crie novas teorias. Seriam várias crianças treinadas para matar? Seria uma tradição repassada entre gerações? Como duas casas em cidades diferentes podem ter tanto em comum?
O mistério das casas japonesas

Esse foi o meu primeiro contato com a escrita do autor e achei interessante a maneira como ele apresentou uma casa após a outra e fez ligações entre elas, despertando assim o interesse do leitor. Quando li a sinopse imaginei ser algo parecido com o filme O Grito, onde haveria uma espécie de maldição, que sentiria um certo frio na barriga ou medo.
Entretanto, a história apresentada por Uketsu é bem original e desperta um outro tipo de curiosidade. O mistério sobre a construção das casas vai aumentando conforme descobrimos que as teorias apresentadas por Kurihara podem ser reais. Ao cogitar que a despensa na garagem funciona como uma passagem secreta para se desfazer dos corpos sem levantar suspeita ou chamar atenção dos vizinhos nos faz imaginar por que os pais fariam isso com uma criança. Que tipo de família cria mini serial killers?
“Olhei o projeto do segundo andar. Nesse momento, senti um arrepio percorrer minha espinha. O quarto da criança sem janelas. O banheiro anexo ao quarto. Eram iguais aos daquela casa.”
Outra teoria muito inteligente é sobre o banheiro sem janelas. De acordo com Kurihara seria onde a vítima meio bêbada vai tomar banho e é atacada sem poder se defender. Confesso que imaginei alguns cenários na minha mente e todos igualmente estranhos.
A primeira e a segunda casa têm muitas semelhanças, a terceira destoa um pouco. Num primeiro momento pode parecer não ser tão estranha quanto as outras, mas é justamente isso que talvez explique a relação entre elas. Por que construíram um altar budista enorme no meio do corredor? Por que há quartos sem janelas e um que não é usado? É possível haver uma passagem secreta como nas casas de Tóquio e Saitama? O que aconteceu com Yo-Chan durante a madrugada?
“… minha teoria é de que o criminoso levou Yo-chan do quarto e o matou em algum outro lugar da casa. Depois, colocou o corpo em frente ao altar. O problema é de que forma ele o tirou do quarto e onde ele o matou.”
A tradição da família Katabuchi
Outro ponto interessante abordado pelo autor é a importância da tradição para a família japonesa. Concordando ou não com determinado costume, todos os membros precisavam obedecer. O respeito pelos mais velhos é uma característica marcante na literatura oriental. Além de cuidar dos pais e avós, é preciso passar adiante tudo aquilo que foi aprendido para manter vivo o sobrenome.
Isso é percebido quando voltamos no tempo para conhecer os antepassados da família Katabuchi e descobrimos em paralelo à origem da terceira casa. Assim como a tradição ‘oferenda memorial da mão esquerda’ que atravessou séculos e se mantém viva até os dias atuais. Faz sentido manter um costume no qual você não acredita ou concorda?
“É difícil imaginar que as pessoas andariam por cima do muro para entrar e sair. Em outras palavras, depois da adição do cômodo triangular, esse jardim deixou de ser usado.”
É importante ressaltar que diferente de outras tradições, os membros dessa família não poderiam simplesmente ignorar. Eles eram obrigados e vigiados a seguirem todos os preceitos. A cada geração as crianças eram isoladas e ensinadas, era feita uma espécie de lavagem cerebral. Quando chegavam numa certa idade elas estariam prontas para cumprir o seu destino.
Isso levanta uma reflexão. O adulto que nos tornamos é a soma de todas as nossas experiências ao longo da vida. É possível escolher um caminho diferente quando fomos ensinados desde a infância o que esperam de nós? Ou há o livre arbítrio para fazermos as nossas próprias escolhas?
A força do amor entre duas pessoas
Casas Estranhas é um mistério mas não poderia deixar de lado um toque sutil de romance. Em nossa viagem no tempo vamos conhecer Ayano e Keita, um caso de amor à primeira vista no ensino médio. Ele, um rapaz diferente, era alvo de bullying dos colegas. Ela, a garota quieta e gentil, veio ajudá-lo. Ela lhe fazia companhia, ele lhe ensinava as matérias nas quais tinha dificuldade. E assim teve início uma história de amor que se tornou mais forte com o passar dos anos.
Quando Ayano percebe as intenções de Keita, ela decide abrir seu coração e contar toda a verdade sobre a tradição de sua família. Ele, ao invés de se afastar, muda seus planos e decide pedi-la em casamento. Keita não consegue imaginá-la sozinha, cumprindo a oferenda. Porém, ele tem um plano. Na sua ingenuidade pensa que poderá enganar a família Katabuchi e viver distante dali com Ayano.
“Começamos a namorar na primavera do segundo ano. Fui eu quem me declarei para ela. Quando ela aceitou sair comigo, minha felicidade era tanta que durante vários dias me senti nas nuvens.”
Mesmo sendo uma passagem rápida a lição que fica é que quando duas pessoas se amam de verdade, elas vão procurar a felicidade uma da outra. Outra reflexão interessante diz respeito à honestidade entre o casal. Um relacionamento saudável é construído com base na confiança e na disposição de ambos serem sinceros. Quando Ayano conta as suas angústias, mostra o seu amor por Keita, ele por sua vez, a compreende e decide ajudá-la.
A maneira como Uketsu conduz o desfecho desses dois personagens leva o leitor a se questionar o que faria na mesma situação. Revelaria toda a verdade? Fugiria? Enfrentaria a família? Quais as consequências de renunciar às suas origens?
A dedicação transformadora dos pais
Outro vínculo que merece destaque é o de Ayano com seus filhos. O que uma mãe é capaz de fazer para mantê-los em segurança? Abrir mão da tradição? Escondê-los de todos? Mudar de país? Qual seria a melhor decisão para salvá-los?
Mesmo Momoya estando a pouco tempo convivendo com Ayano e Keita, eles o tratam como um filho de verdade e decidem educá-lo diferente do que foi estabelecido pela família Katabuchi. O jeito como eles o instrui, os diálogos, os ensinamentos, a paciência, mostram que quando uma criança cresce num ambiente saudável é possível moldá-la e tirá-la das sombras.
“Sua constituição física não diferia muito da média das crianças de sua idade, mas ele era de uma palidez nada saudável, e sua expressão era como se todas as suas emoções tivessem sido drenadas, mostrando a anormalidade do ambiente onde fora criado.”
Há muitas discussões nas áreas da psicologia e do direito sobre o ser humano ser ou não fruto do ambiente em que cresceu. Algumas crianças tiveram um lar desestruturado e mesmo assim conseguiram deixar isso para trás. Por outro lado, crianças que cresceram numa família amorosa, com recursos, oportunidades, e mesmo assim se desviaram desse caminho e se tornaram infratores ou foras da lei.
“Quando elogiávamos, ele sorria e ficava encabulado; quando perdia em um jogo, ficava frustrado. Levou um tempo, mas sentimos que brotaram nele emoções infantis condizentes com a sua idade.”
A dedicação dos pais, dia após dia, mostra que o destino pode ser reescrito. Mesmo que tudo coopere para um determinado caminho, há a possibilidade de mudá-lo.
A planta baixa e o espaço misterioso

O recurso visual que mais chama atenção é sem dúvida a planta baixa de cada casa. O autor fez questão de mostrá-las com detalhes a cada nova descoberta. Isso permite ao leitor conhecer os cômodos de todas as casas e criar suas próprias teorias. Os ambientes sem janelas, as portas duplas, o quarto isolado da criança, o banheiro sem paredes, o cômodo construído em cima do jardim, cada particularidade é apresentada de forma simples e fácil de entender.
A cada novo desenho conseguimos acompanhar as teorias de Kurihara e perceber se ele está certo. Por que alguém deixaria uma criança trancada? Ou por que um armário teria uma passagem secreta? Ou ainda, como a família se desfazia dos corpos sem nenhum vizinho perceber? Esses e outros questionamentos perseguem o leitor até as últimas páginas de Casas Estranhas.
Minhas impressões sobre a leitura
Casas Estranhas é um livro curtinho, com menos de 200 páginas. Seria uma leitura rápida, mas os desenhos das casas me chamaram atenção então demorei um tempo maior para terminá-lo. A escrita do autor é simples e a forma de diálogo deixou a experiência mais interessante. Foi a primeira vez que vi esse formato, e achei bem criativo.
Muitas vezes os autores criam cidades fictícias para as suas histórias, então descobrir que Saitama existe de fato me fez pesquisar mais informações e conhecer um pouco sobre a cultura daquele lugar. Assim como Tóquio, que é a cidade onde a história é ambientada. É um exercício que faço sempre que vejo uma cidade diferente quando estou lendo.
“… havia livros espalhados por todo canto. Os muitos deles relacionados à arquitetura eram suplantados pelos romances de mistério.”
Pela história ser breve e o foco ser as casas, não há profundidade ou camadas, mas isso não impediu o autor de criar personagens marcantes. Kurihara é ao mesmo tempo divertido, inteligente e cheio das teorias mais mirabolantes o que deixa a leitura ainda mais envolvente. Em alguns momentos me vi perguntando de onde ele buscava tanta criatividade para explicar a função de cada cômodo.
Quanto a edição da Intrínseca o trabalho gráfico ficou incrível. Atenção especial à planta baixa que vem na capa e já deixa o leitor na expectativa quanto ao que irá encontrar durante a leitura. As folhas amarelas além de esteticamente bonitas são confortáveis.
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