O Vermelho é a cor da resistência em ‘As Sereias de Haarlem’

Ronaldo Gilleti

A Segunda Guerra Mundial deixou marcas tão profundas que alguns ecos ainda parecem atravessar o tempo — como o estilhaçar de uma janela ao amanhecer ou o canto sufocado de uma mulher, perdido entre explosões. Em As Sereias de Haarlem, quadrinho publicado no final de 2024 pela editora Nemo, esses sons não apenas reaparecem, mas ganham cor, forma e memória.

Sob o olhar brasileiro

Antes de tudo, vale destacar que essa é uma história contada a partir de um olhar brasileiro, com roteiro de Felipe Pan (O Menino Rei, Gioconda) e arte de Gio Guimarães (Besouro Verde, O Irmão do Jorel). E talvez por isso a leitura doa de um jeito tão íntimo. As Sereias de Haarlem não se aproxima com delicadeza; chega como a própria guerra que retrata — abrupta, devastadora. É difícil o leitor não sentir na boca o gosto metálico do medo e, na pele, o toque seco da ausência. Uma dor que, embora não vivida por nós, é impressa com uma precisão quase brutal.

A obra mergulha em um dos períodos mais sombrios da humanidade: a ocupação nazista nos Países Baixos durante a Segunda Guerra Mundial. Mas, em vez de se arrastar pelos rastros dos tanques, batalhas e estratégias militares, escolhe lançar luz sobre personas muitas vezes esquecidas nas narrativas de guerra — mulheres que, entre o silêncio das casas, as sombras das ruas e os becos ocultos, teceram redes de resistência, enfrentando o horror com coragem e humanidade.

Em Haarlem, cidade holandesa mergulhada na penumbra da ocupação nazista, um grupo de mulheres (Hannie Schaft, as irmãs Truus e Freddie Oversteegen) ergueu a voz em meio ao silêncio imposto pelo medo. Elas são as “sereias” do título — não as mitológicas que seduzem marinheiros ao naufrágio, mas mulheres de carne, osso e cicatriz, que transformaram o luto em luta. Ao longo das 136 páginas, conhecemos personagens reais e complexas, movidas por ideais, perdas e uma fúria contida que não aceita a injustiça.

A escolha do termo “sereias” não é gratuita. Afinal, há um peso histórico inevitável nesta narrativa. Ao revisitar a resistência holandesa feminina, o quadrinho toca em feridas ainda abertas, mas o faz com respeito e profundidade. As personagens são complexas — e isso é mérito do roteiro de Felipe Pan, que evita maniqueísmos e dá espaço para as nuances de quem viveu sob ocupação, medo, traição e desespero.

O vermelho é vida, mas também é violência

A arte de Gio Guimarães complementa essa densidade com um domínio visual impressionante. Seus quadros são delicados e brutais na mesma medida. Mas é na escolha das cores — especialmente o vermelho — que a obra atinge seu ponto mais alto. Vermelho do sangue derramado. Vermelho do batom que se recusa a desaparecer. Vermelho dos panfletos de resistência jogados às pressas. Vermelho como marca de um tempo em que tudo parecia ruir, mas onde ainda havia quem se levantasse.

Essa insistência cromática não é mero recurso estético. Ela carrega um sentido filosófico profundo: o vermelho é vida, mas também é violência. É o paradoxo da condição humana em tempos extremos. Friedrich Nietzsche escreveu que “aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro”. Em As Sereias de Haarlem, vemos mulheres lidando com esse sentimento abissal, enfrentando o horror sem se perder dele — mas, às vezes, ferindo-se irremediavelmente no processo.

Ler As Sereias de Haarlem é ser arrastado por um redemoinho de lembranças, onde a memória histórica pulsa com força. É fácil ser transportado para a solidão angustiante de filmes como O Pianista, de Roman Polanski, onde cada nota soa como um suspiro em meio ao caos. O zelo com a reconstrução do passado, aliado ao uso da arte como forma de denúncia, aproxima a HQ de outros quadrinhos como Maus, de Art Spiegelman. Ainda que sigam trilhas diferentes, ambos compartilham a mesma urgência de lembrar. Porque lembrar também é um ato de resistência.

Que tipo de coragem teria?

A obra de Felipe Pan e Gio Guimarães é, acima de tudo, um relato sobre escolhas. Em tempos sombrios como os retratados no quadrinho, gestos aparentemente simples — como proteger um vizinho, esconder uma carta ou sabotar um comboio nazista — ganham uma dimensão moral arrebatadora. São atitudes que ecoam como perguntas incômodas no coração do leitor: e eu? Que tipo de coragem teria?

Por fim, fica a sensação de que as páginas não se fecham com a leitura. Elas permanecem abertas em algum lugar dentro da gente. Como o som distante de uma sirene. Como o tom vermelho que insiste em não desaparecer. Como uma memória que, se respeitada, pode se transformar em luz.

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