RASL – Jeff Smith entre teorias, dimensões e dilemas

Ronaldo Gilleti

É curioso como certos autores conseguem, ao longo do tempo, manter uma estética autoral firme enquanto trafegam por temas tão distintos. Jeff Smith é um desses nomes raros. Criador de Bone, série aclamada pela crítica e por leitores de todas as idades, ele vem moldando seu lugar na história dos quadrinhos com uma narrativa cartunesca, divertida, mas sempre ancorada por subtextos que davam peso às suas histórias. Depois, em Shazam: The Monster Society of Evil (Shazam e a Sociedade dos Monstros), usou esse mesmo estilo para reinterpretar um dos heróis mais clássicos da DC Comics – e novamente o cartum serviu como ferramenta para abordar temas maiores, como identidade, crescimento e pertencimento.

Mas é em RASL que Smith dá uma guinada mais radical – estética e narrativa – e entrega sua obra mais densa, adulta e arriscada. A HQ, lançada originalmente em 15 edições entre 2008 e 2012, e agora publicada no Brasil pela Todavia em um volume integral de 472 páginas com tradução de Érico Assis, é uma exploração, ao mesmo tempo, visual e filosófica de temas como ciência, ética, trauma e realidades alternativas.

No centro da história está RASL, um ladrão de obras de arte que se desloca entre diferentes dimensões graças a uma parafernália experimental criada a partir de estudos científicos reais. Seu nome, sigla para “Romance at the Speed of Light”, já entrega algo da natureza ambígua do personagem: ele não é apenas um fugitivo ou um anti-herói noir; é um ex-cientista que carrega nas costas o peso de uma descoberta revolucionária – e o luto por suas consequências.

A estrutura da HQ é fragmentada como um quebra-cabeça. No início, pouco sabemos sobre RASL. Apenas que ele está sendo perseguido, que rouba obras de arte valiosas, e que parece estar em constante fuga, não apenas da polícia, mas de algo muito mais profundo e inescapável. Aos poucos, o leitor é levado a compreender que a fuga é, na verdade, uma tentativa de consertar um erro – um erro científico, ético e pessoal – cometido quando ainda trabalhava num projeto secreto envolvendo experimentos baseados nos diários de Nikola Tesla.

E aqui reside um dos grandes trunfos da HQ: a maneira como Jeff Smith insere a ciência dentro da narrativa sem torná-la inacessível. As teorias de Tesla, que já beiram a ficção por si só, funcionam como espinha dorsal do enredo. Há espaço para explicações sobre campos eletromagnéticos, frequências ressonantes e o famoso “Raio da Morte”, mas tudo isso é filtrado pela jornada emocional do protagonista. Em vez de didatismo enfadonho, temos um misto de thriller, drama e ficção científica de alto nível.

Para os leitores que saem da adolescência rumo à vida adulta – ou para os adultos que ainda têm paixão por ciência e narrativa gráfica -, RASL é um prato cheio. Sua trama não subestima o leitor. Exige atenção, paciência e disposição para encarar não apenas conceitos científicos complexos, mas também os dilemas morais que surgem quando se manipula conhecimento com poder destrutivo.

E, apesar do tom adulto e sombrio, o traço de Jeff Smith continua fiel à sua essência cartunesca. E essa escolha é, novamente, brilhante. O contraste entre o visual mais “leve” e o conteúdo denso cria uma tensão constante nas páginas. As cores vibrantes (na versão colorida que chegou ao Brasil), os planos angulados e os jogos de sombra intensificam a sensação de vertigem de um protagonista que, a cada salto dimensional, perde um pouco mais de si mesmo. Em alguns momentos, as páginas remetem a obras como Donnie Darko ou O Homem do Castelo Alto, onde o multiverso é mais do que um truque de enredo – é uma metáfora para a culpa, a memória e o desejo de reescrever o passado.

Outro acerto notável é como Smith trabalha a ancestralidade e a espiritualidade. RASL, em suas viagens por outras dimensões, entra em contato com elementos da mitologia dos povos originários norte-americanos. Esses encontros, mais do que meros floreios narrativos, inserem uma camada simbólica à trama – como se ciência e espiritualidade fossem dois caminhos possíveis para compreender o que é o real.

Essa abordagem de misturar teorias científicas e ancestralidade espiritual nunca soa forçada. Pelo contrário, ela aprofunda a discussão sobre responsabilidade: o que fazemos com o conhecimento que temos? Como lidar com as consequências dos nossos atos, mesmo quando foram motivados por boas intenções?

A edição da Todavia faz jus à grandiosidade da obra. O volume único é bem cuidado, com impressão de qualidade, capa resistente e tradução precisa de Érico Assis, que mais uma vez mostra por que é um dos principais nomes da tradução de quadrinhos no Brasil. É uma edição definitiva, feita para ser lida, relida e discutida.

No fim das contas, RASL não é apenas uma história sobre mundos paralelos. É uma HQ sobre um homem tentando costurar os retalhos de sua própria alma enquanto salta entre versões possíveis de sua vida. É sobre arte, ciência e escolhas – e sobre como cada uma delas pode nos levar por caminhos irreversíveis.

Se Jeff Smith já era querido no mundo dos quadrinhos por sua sensibilidade e domínio do ritmo narrativo, com RASL ele se consolida como um autor capaz de ampliar seu próprio universo criativo sem perder sua identidade. Uma leitura obrigatória para quem gosta de quadrinhos que desafiam tanto a mente quanto o coração.


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