As Rainhas Bandidas: amizade, empoderamento e cultura hindu

Érika Monteiro

As Rainhas Bandidas é o livro de estreia de Parini Shroff, indicada ao Women’s Prize 2023. A Astral Cultural é a editora responsável por trazer ao Brasil uma edição colorida e lindíssima que chama atenção desde o primeiro momento.

O enredo apresenta ao leitor personagens marcantes e divertidos, como Saloni, meio duvidosos, como Farah, e carismáticos, como Bandido. Uma história envolvente e inspiradora sobre mulheres fortes que se unem para mudar o próprio destino. Uma lição que aborda rivalidade, empoderamento feminino, amizade e a importância de saber em quem confiar.

A autora usa como plano de fundo um vilarejo fictício próximo a Kohra, uma vila em Amethi (Uttar Pradesh). A inspiração veio dos lugares que conheceu durante as suas viagens e também da casa onde viveu na infância. Além disso, traz características de Ahmedabad, uma cidade de Gujarat, onde vive sua família.

Mesmo após anos longe uma da outra, Saloni e Geeta mostram que algumas amizades resistem aos desafios impostos pela vida. Venha conhecer e se encantar com essa história.

Ramesh, o marido de Geeta, nossa protagonista, desapareceu cinco anos antes. Desde então, todos no pequeno vilarejo onde mora acreditam que ela o matou. Isso a torna uma churel, uma criatura lendária vingativa em forma de mulher. Todos ali, principalmente as crianças, têm medo de se aproximar.

Ser viúva trouxe a Geeta a liberdade que tantas mulheres indianas sonham alcançar. No entanto, o preço que paga é alto demais, principalmente pela maneira como é tratada. Todos a julgam como assassina e se afastam. Sem amigas, família ou pretendentes, ela vive seus dias cuidando do seu pequeno negócio de joias.

Sua rotina muda quando é procurada por Farah, uma das integrantes do grupo de microempréstimos. A mulher quer sumir com o próprio marido e ser livre assim como Geeta. O que ela não sabe é que Ramesh não foi morto por Geeta — ele simplesmente desapareceu. Porém, se contar a verdade, Geeta perderá todo o “prestígio” que alcançou ao longo dos anos; se seguir com o plano, poderá ser de fato responsável pela morte de uma pessoa.

A notícia logo se espalha, e outros integrantes do grupo ficam sabendo que podem se livrar dos seus maridos, o que deixa Geeta em pânico. Como um vilarejo que até então a julgava pela morte do próprio marido passou a aceitar de maneira tão tranquila que outras mulheres façam o mesmo?

Entre inseguranças, discussões e planos que podem ou não dar certo, Geeta terá que se esquivar da maldade das outras mulheres ao mesmo tempo em que vive o conflito entre provar sua inocência ao reencontrar o marido e manter sua fama de assassina, garantindo o respeito de todos.

As Rainhas Bandidas é um livro com mais de 400 páginas e, mesmo assim, há poucos personagens, diferente de obras como Harry Potter, O Senhor dos Anéis ou Game of Thrones. Um dos primeiros a me chamar atenção foi Raees, um dos filhos de Karem. Ele é aquela criança sorridente, que gosta de conversar e ama cachorrinhos. Na primeira cena em que aparece, consegui imaginá-lo sorrindo para Geeta ao chamá-la de tia.

Por falar em bichinhos de estimação, não posso deixar de mencionar Bandido, o cachorro vira-lata que Geeta salva em Kohra, um vilarejo vizinho. Uma das cenas mais emocionantes e dignas de cinema. Geeta, que nunca pensou em ter filhos, mora numa casinha simples e sempre acreditou que ter bichos em casa era privilégio de pessoas ricas. Mas isso muda quando ela se torna uma heroína, salvando vários cachorrinhos e ainda adotando o mais simpático deles (uma cena muito fofa).

Saloni, ex-melhor amiga de Geeta, é sem dúvida uma das personagens mais fortes e marcantes. Conforme a história evolui, é possível perceber como sua personalidade foi se moldando ao longo dos anos. Há momentos em que a comparamos com uma vilã, mas a autora desvenda camada por camada de uma mulher que sobreviveu a situações inimagináveis e conseguiu superá-las. Entendemos também os motivos por trás de suas ações.

A sociedade na Índia é dividida em castas, ou seja, grupos hierárquicos dos quais as pessoas fazem parte desde o nascimento. Se um indivíduo nasce dalit (o mais baixo na hierarquia), não há como ascender. Os dalits são considerados intocáveis, impuros, e a eles são destinados os piores trabalhos, como recolher lixo e cuidar de cadáveres (inclusive de animais). Além disso, não podem usar as mesmas roupas que outras castas nem beber água nas mesmas fontes.

A autora insere essa característica de maneira delicada e reflexiva em diversas cenas. Uma delas é quando Geeta e Saloni são adolescentes e uma menina dalit sofre bullying e está com sede. Pelo costume, ela deveria esperar até que alguém lhe oferecesse água, porém todos a ignoram. Neste momento percebemos o quanto a cultura hindu é forte e presente em todos os lugares.

Em outra cena, em que há um animal morto na rua, uma mulher dalit e seus filhos pequenos são chamados para recolher o “lixo”. Quando uma das crianças vai brincar com Bandido, sua mãe o proíbe porque ele é impuro e não pode tocar em nada. Geeta não se incomoda e diz que o cachorro não morde. No entanto, a questão é que essas pessoas são criadas à margem da sociedade, sem direitos. Seu karma é servir às castas superiores sem manter um relacionamento próximo.

É interessante perceber que, mesmo com o passar dos anos e medidas para diminuir a desigualdade, como cotas nas universidades e empresas, o sistema de castas ainda é muito presente devido à cultura.

Outra prática bem comum na Índia são os casamentos arranjados. A família do noivo procura uma moça da mesma casta que seja compatível e garanta um casamento bem-sucedido. Quando Geeta era mais jovem, a família de Ramesh quis conhecê-la e saber se ela seria uma boa esposa. Um dos desafios era preparar um pãozinho sem queimá-lo. Geeta, no entanto, estava muito ansiosa, e Ramesh, vendo seu nervosismo, a ajudou. Assim, ela passou no teste e foi dado início aos preparativos do casamento.

Esse costume divide opiniões. Há quem confie nos próprios pais para escolher um bom pretendente. Por outro lado, há quem sonhe com um casamento por amor. Mas poucos conseguem realizar esse sonho. Pode haver sentimentos num casamento arranjado?

Fazendo um paralelo entre o costume oriental e os relacionamentos nos dias atuais, percebemos o quanto as pessoas se sentem perdidas quando o assunto é encontrar alguém para dividir a vida. De acordo com estudos em psicologia, o ser humano se sente cada vez mais solitário, mesmo com sites e aplicativos de relacionamentos.

Ainda existem pessoas que buscam relacionamentos duradouros? Que queiram formar uma família, ter filhos e manter uma estabilidade emocional? Nos últimos meses surgiu um debate no Threads sobre a volta dos casamentos arranjados devido à dificuldade em encontrar pessoas dispostas a se casar. Num momento em que as opções são tantas, como fazer a melhor escolha?

As pessoas estão menos suscetíveis a perdoar erros e aceitar defeitos do outro, então, quando a relação mostra os primeiros sinais de incompatibilidade, é mais fácil terminar e buscar outro parceiro.

De acordo com Zygmunt Bauman, autor de Amores Líquidos, as relações estão cada vez mais descartáveis. Há uma busca pelo bem-estar imediato e individual que demonstra a fragilidade das relações humanas na sociedade atual. O foco no compromisso e em fazer durar foi substituído pela insegurança e ansiedade, pois não há razão para um esforço maior.

Os vínculos que antes eram cultivados na infância, os amores que surgiam na adolescência ou mesmo as amizades na vida adulta deram lugar a relacionamentos frágeis, que podem facilmente ser descartados. Há um medo intrínseco do compromisso e de mostrar a própria vulnerabilidade. O que exige tempo, paciência e dedicação — e muitos não estão dispostos a oferecer.

Alguns estudos mostram que o surgimento da internet é parte responsável por essa mudança de comportamento. A quantidade de informações, a rapidez com que tudo acontece e a forma como uma novidade se torna notícia antiga em questão de segundos geram a sensação de que as pessoas estão sempre atrasadas, de que há sempre outro lugar para estar ou alguém melhor para conhecer.

Há um conflito entre manter a própria individualidade e buscar um relacionamento. Se os pais fossem os responsáveis por encontrar um candidato adequado, esse vazio ou solidão que muitas pessoas sentem diminuiria? Os casamentos durariam mais? Por outro lado, fica o questionamento: o ser humano só encontra felicidade vivendo um relacionamento? É possível encontrar realização sem casar ou ter filhos? O indivíduo se sente completo investindo tempo na carreira, em viagens ou na religião?

Um dos temas mais fortes trazidos pela autora é a violência doméstica. Como o casamento é arranjado e não por amor, há esperança de que dê certo, mas o marido pode ser violento. É o que acontece com Geeta e Farah: ambas apanham quando os maridos estão bêbados. Enquanto Geeta pensa ser responsável por aquela situação, Farah busca um jeito de se livrar de Samir.

Ler alguns trechos me deixou triste por imaginar que essa situação é mais comum do que imaginamos. E acreditar que muitas mulheres ainda pensam como Geeta é preocupante.

Geeta amou Ramesh desde que o viu pela primeira vez. Após anos de casamento, se questiona em que momento ele deixou de ser aquele marido atencioso e passou a agredi-la por cada coisa errada que ela fazia, como usar muito tempero, queimar o pãozinho ou corrigi-lo quando pronunciava alguma palavra errada. Mas nunca passou pela sua cabeça livrar-se dele. Ela o ama e, sempre que o vê, relembra como ele a ajudou quando se conheceram.

Farah, por outro lado, traz consigo um sentimento de raiva e vingança. Samir, além de beber e agredi-la, rouba seu dinheiro. Quando vai se reunir com o grupo de microempréstimos, ela não tem como pagar. Como se tudo isso não fosse suficiente, ele também agride as crianças, o que é imperdoável para Farah. Sabendo que Geeta se livrou do próprio marido, pede a sua ajuda.

É certo buscar vingança e agir de acordo com seus princípios? Como o casamento arranjado é parte da cultura indiana, a esposa deve obediência e respeito ao marido. E quem pode defendê-la nessas situações? Seria mais fácil se houvesse a oportunidade de arrumar as malas, pegar as crianças e simplesmente ir embora. Mas isso é impossível para a grande maioria.

Após o nascimento dos filhos, muitas mulheres se dedicam em tempo integral a cuidar da casa, da educação e a manter tudo em ordem. Quando acontece um caso de violência, não estão preparadas. Muitas vezes sem dinheiro, sem apoio e sem ter a quem recorrer, continuam se sujeitando àquele ambiente.

Para quem observa a situação à distância, parece simples decidir ir embora. Mas, para quem está no meio do caos, às vezes é difícil perceber que há uma saída, que há outro caminho e que a vida pode ser diferente em outro lugar.

Há alguns anos, uma amiga estava em um relacionamento abusivo. O marido a maltratava, xingava e, depois que a filha nasceu, também batia na criança. Quando a situação ficava insustentável, ela arrumava uma mochila e ia para a casa da mãe ficar uns dias. Logo depois, ele voltava pedindo desculpas, dizia que tudo ia mudar e que a amava. Ela aceitava como se nada tivesse acontecido. Isso se manteve até a menina completar uns 5 ou 6 anos.

Na época, ela o amava muito e acreditava que, no restante do tempo, ele era bom, então valia a pena permanecer casada. Além disso, o casamento foi uma forma de sair de casa, então retornar seria dar um passo para trás. Durante um período em que ele mantinha as contas, ela saiu do emprego. Esse foi um dos motivos que a impediram de deixá-lo. Como ia sustentar a filha? Voltaria a morar com os pais? Esse medo a paralisou e a fez permanecer com ele por mais tempo, aguentando os maus-tratos.

Outra amiga era muito apaixonada por um rapaz que conheceu na adolescência. Sempre quis se casar com ele, porém a vida o levou por outros caminhos e ele se casou com outra pessoa. Ela então desistiu de amar novamente, conheceu um rapaz na igreja e aceitou se casar porque ele era bom e não queria ficar sozinha. Hoje, ainda não o ama, mas mantém o casamento por causa do filho.

Em momentos de reflexão, me questiono quantas outras mulheres vivem infelizes por causa de decisões parecidas. Por que muitas preferem uma relação cheia de conflitos a viver sozinhas ou continuar tentando encontrar alguém que possam amar de verdade? É um questionamento que possui mais de uma resposta correta.

O ponto principal abordado pela autora é, sem dúvida, o grupo de microempréstimos. Algumas mulheres se reúnem em grupos e, por meio de um agente financeiro, obtêm crédito para seus pequenos empreendimentos: confecção de vestidos, joias, doces caseiros e outros produtos que possam garantir renda extra às suas famílias. O empréstimo só é concedido a grupos, e não de maneira individual. Toda semana elas se reúnem para quitar uma parcela do dinheiro que pegaram emprestado.

Nesse momento, conhecemos um pouco mais sobre a personalidade de cada uma delas. A mais bonita, a extrovertida, a de gênio forte, a inibida, a insegura, a simpática — diferentes entre si, mas com algo em comum: todas estão em busca de seus objetivos. Isso as torna mais unidas.

Numa sociedade em que os homens têm papel de destaque, uma mulher comum decidir se arriscar e montar seu próprio negócio é empoderador. Mostra às meninas mais novas que há outras alternativas além do casamento. Mesmo que seus pais arranjem um casamento, elas precisam ser independentes e ter seu próprio dinheiro.

Apesar de Geeta, em alguns momentos, mostrar mais medo do que coragem, é inspirador acompanhar o seu desenvolvimento ao longo da história. Ela começa meio tímida, insegura, e, a cada novo capítulo, vemos crescer sua força interior. Como se algo dentro de si ganhasse vida e ela encontrasse um motivo para continuar lutando e seguindo em frente.

A amizade entre Geeta e Saloni é aquele momento que aquece o coração. Uma trajetória com idas e vindas que mostra que os verdadeiros laços sobrevivem ao teste do tempo. Elas são amigas desde a infância, mas, por causa de alguns desentendimentos, acabaram se afastando. A autora, no entanto, refaz a amizade com delicadeza capítulo após capítulo, o que gera certa identificação no leitor.

Em muitas histórias, os autores tendem a descrever, num capítulo à parte, fatos ocorridos no passado. Parini Shroff, no entanto, mescla de um jeito que lembra como nós mesmos recordamos no nosso dia a dia — e isso me chamou bastante atenção.

Quando Geeta vai à casa de Karem e bate na porta, um acontecimento vem à sua mente. Logo somos transportados ao passado. No momento seguinte, estamos em sua cozinha quando viu Ramesh pela primeira vez, na escola com Saloni ou na sala de sua casa com seus pais. Tão natural que nos sentimos parte da história. Não há ruptura entre passado e presente. É como estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Outra curiosidade sobre As Rainhas Bandidas é o idioma hindu. A autora, no decorrer da história, trouxe diversas expressões. Achei bem interessante saber algumas delas. No final do livro há um glossário explicando o significado:

Esse foi o primeiro livro indiano que li, e gostei bastante de conhecer a escrita da autora. A maneira como ela descreve o vilarejo, os personagens, as sensações, os animais, as casas e o Bandido, principalmente, lembra um pouco Dostoiévski em Noites Brancas.

Conforme a leitura evolui, é possível se imaginar caminhando naquelas ruas cheias de poeira, rebanhos de cabras, búfalos, crianças brincando com uma bola meio murcha e um sol escaldante num céu sem nuvens. Também é possível perceber o descontentamento de Saloni com a própria aparência e o quanto ela busca chamar atenção de outras maneiras, desviando o foco por estar acima do peso.

A riqueza de detalhes sobre a cultura indiana me fez pesquisar e ler mais a respeito das castas, dos casamentos arranjados e da mudança de mentalidade sobre as cotas nos tempos atuais. É incrível descobrir um jeito de viver completamente diferente e entender os costumes de um povo.

As festividades, semelhantes ao que acontece em países como a Escócia, despertam curiosidade no leitor. O Karva Chauth, por exemplo, é um festival hindu em que as mulheres casadas fazem jejum durante o dia para rezar pela longevidade e saúde dos maridos. Elas se reúnem também para celebrar a amizade feminina e a união das famílias. Navratri é outro festival hindu mencionado pela autora. Em todas essas datas especiais, grupos de mulheres se reúnem, decoram suas casas e preparam pratos típicos.

Além das festas, Parini cita diversos costumes tanto do povo hindu quanto do povo muçulmano, referentes a vestimentas, saudações e casamento. Geeta é uma viúva hindu, Karem é viúvo muçulmano; mesmo assim, a relação entre eles não seria vista com bons olhos pelos moradores do pequeno vilarejo.

Após finalizar a leitura, senti um carinho especial pelo Bandido. Quem tem um cachorrinho que gosta de brincar, passear e ficar no meio das crianças vai se encantar. Na hora do banho, quando ele se chacoalha e joga água para todos os lados, é muito divertido. As Rainhas Bandidas foi uma leitura triste, reflexiva e engraçada na medida certa.

Muito obrigada à Livraria Leitura e à Astral Cultural pela oportunidade de conhecer Parini Shroff e ler As Rainhas Bandidas. Gostei da experiência!


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