Como Nascem os Fantasmas: uma fantasia envolvente e sombria

Érika Monteiro

Como Nascem os Fantasmas é a mais nova fantasia de Verena Cavalcante, autora de Inventário de Predadores Domésticos. O livro, publicado pela Suma, conta a história de Beatriz, uma garotinha de apenas 11 anos que sonha em ver fantasmas, falar com eles e se tornar especial, assim como a sua avó.

Bea, como é conhecida, foi criada pela avó, Dona Divina. A senhora cheia de trejeitos é médium e líder religiosa numa pequena cidade do interior de São Paulo. A menina fica deslumbrada cada vez que participa de uma sessão em que a benzedeira fala com os mortos. Vó Didi, como é chamada pela neta, é conhecida também por suas orações de cura, cirurgias espirituais e diversas cerimônias com velas.

Ângela, mãe de Beatriz, morreu durante o parto. No momento em que sua alma deixou o corpo, a luz foi transferida para o bebê recém-nascido. Sendo assim, a menina é Ângela reencarnada. Essa é a história que Bea ouve desde pequena. Por esse motivo, ela cresce usando as roupas da mãe, imitando seus gestos ao ver as fotografias espalhadas pela casa e tentando, muitas vezes com grande esforço, conquistar o amor e a admiração da avó.

O episódio que muda tudo

Um dia, ao acaso, Beatriz lê no jornal sobre o desaparecimento de Mayara, uma garotinha de 8 anos. Ela fica esperançosa quanto à possibilidade de sua avó descobrir o que aconteceu com a menina. Dona Divina comenta que não há mais o que fazer. No entanto, alguns dias depois, durante uma queda de energia, ela incorpora o espírito de Mayara, e a criança lhe conta tudo o que aconteceu; assim, a polícia encontra seu corpo.

Esse acontecimento marca a infância de Beatriz. Agora, mais do que nunca, ela quer aprender todas as técnicas, feitiços e formas de receber espíritos, além de descobrir os segredos do outro lado. Quer ser tão famosa e importante quanto a vovó Didi.

Como Nascem os Fantasmas é uma história intensa, envolvente e cheia de nuances, porém com poucos personagens, o que nos faz acompanhá-los mais de perto. Mesmo Beatriz sendo a protagonista, foi Lipe que ganhou o meu coração. O jeito dele sempre por perto, meio calado e carregando uma tristeza no olhar faz com que nos questionemos como ele se tornou essa criança.

Lipe e Beatriz gostam de caminhar perto da ferrovia, observando a linha do trem, a casinha antiga que servia de estação em outros tempos e a natureza selvagem da pequena cidade. Em meio ao matagal que cresce sem direção, suas roupas ficam cheias de carrapichos, as pernas arranhadas e as bochechas rosadas com o sol do final de tarde. Cindy, a cachorrinha vira-lata, está sempre por perto e tem um lugar especial no coração de Lipe.

Cadu, por outro lado, é aquela criança cheia de energia que gosta de brincar com tudo ao mesmo tempo. Correr atrás da bola, jogar videogame e viver altas aventuras com os amigos que moram na mesma rua. Sua maior felicidade foi quando ganhou um PlayStation; isso o manteve dentro de casa por vários dias. Nanda, sua irmã, é a mais nova das crianças e sempre chora quando Bea conta histórias assustadoras sobre fantasmas, espíritos e outras coisas bizarras.

Esse foi o meu primeiro contato com a escrita de Verena e estou simplesmente encantada. Há uma mistura de linguagem coloquial, culta e interiorana que proporciona uma experiência riquíssima. Em certos momentos, é preciso ter um dicionário do lado para conseguir compreender uma frase mais elaborada; em outros, mergulhamos no linguajar de Dona Divina e relembramos com carinho aquelas pessoas simples que moram no interior.

Além disso, há toda uma construção de cenas que torna impossível não se imaginar vivendo cada uma delas: a maneira como descreve a estação de trem, o casarão antigo, a rua onde Beatriz mora e, também, a casa onde a menina vive junto com os avós. É tamanha a riqueza de detalhes que, ao fecharmos os olhos, visualizamos cada pequeno cômodo, os bibelôs, os santos e sentimos a alma da casa antiga.

Com tamanha criatividade, a leitura nos apresenta a lenda da Mulher Vermelha. Após descobrir sua história, a curiosidade faz com que Beatriz tenha ainda mais vontade de ser como a avó. E assim a menina começa a ler todos os diários do avô, tomar nota do que é importante e dá início ao seu primeiro feitiço. A loira do banheiro é uma das lendas mais conhecidas entre as crianças dos anos 1990. Apesar de ter estado no momento em que uma garota puxou a descarga três vezes na hora do intervalo, sempre tive medo — ainda mais quando todas as crianças saíam correndo e um silêncio mórbido tomava conta do banheiro. Lembro que estava na quarta série quando isso aconteceu.

Lendas que marcaram a infância

Beatriz é uma ótima contadora de histórias, então ela aproveita a curiosidade das outras crianças para criar as suas próprias ou melhorar aquelas que ouve de Dona Divina. Foi num desses momentos, na minha infância, que participei daquela brincadeira do copo e da caneta. Fiquei bastante tempo assustada, pensando no que poderia acontecer e me perguntando como ele se mexia sozinho. Numa outra vez, brincaram com uma tábua ouija. Relembrando agora, sinto que as crianças daquele colégio eram bem corajosas.

Medos que atravessaram gerações

Durante um tempo, todas as mães falavam sobre o velho do saco: ele passava pela cidade e, se visse uma criança desobediente, levava embora. Depois disso, todo andarilho que surgia nos arredores da igreja, da escola ou no caminho de casa deixava as crianças assustadas. Era um misto entre o desafio de ficar para descobrir se era verdade e a vontade de sair correndo e se esconder. Lembro ainda que um desses passou perto da minha casa; caminhava havia vários dias e estava com fome, e meus pais deixaram que ele dormisse na nossa casa. Admiro muito a bondade deles naquela época.

Beatriz ama ouvir histórias, principalmente aquelas sobre fantasmas. Logo no início de Como Nascem os Fantasmas acompanhamos vovó Didi contar pela milésima vez como foi o nascimento da neta: aquele momento mágico em que o espírito de Ângela desencarna e toma conta do corpinho de Bea. A menina vive um pequeno conflito interno entre aceitar que é especial por causa disso e precisar viver à sombra da mãe, sem poder ter personalidade própria.

A menina usa roupas, calçados e acessórios antigos da mãe. A avó raramente lhe compra algo novo. As duas são bem diferentes em relação ao corpo. Enquanto Ângela era magrinha, frágil e delicada, Beatriz é corpulenta, alta e um pouco grosseira (tanto fisicamente quanto na personalidade). Isso a faz pegar fotos antigas da mãe e passar dias e dias imitando suas poses, sorriso e jeito de se comportar. Ela acredita que, assim, será mais amada pela avó.

No entanto, num dia de fúria, Beatriz reúne todos os pertences da mãe, leva para o quintal e põe fogo em tudo. Ela simplesmente cansou de fingir ser outra pessoa. A menina queria ser amada por ser ela mesma e não pela idealização da avó. Em várias ocasiões, quando Bea agia de certa maneira, sua avó comentava que, se fosse Ângela, o comportamento seria diferente — o que contribuiu para que o desprezo pela mãe surgisse e ganhasse força.

Quando a ficção encontra a nossa própria infância

Acredito que algumas crianças vivenciaram essa situação de perto, principalmente quando os pais conhecem os coleguinhas e descobrem que outras crianças são mais comportadas, tiram melhores notas ou possuem habilidades especiais para a arte ou o esporte e criam expectativas sobre os próprios filhos. Lembro de quando tinha a mesma idade de Bea e meus pais elogiavam alguma amiga que era tranquila, quieta e que não dava trabalho. Isso porque, desde pequena, sempre fui agitada e gostava de conversar bastante. Era quase impossível para mim ficar parada muito tempo num mesmo lugar.

Esse comportamento tem um pouco a ver com o temperamento. Na minha família, somos três filhas e, pelo meu jeito expansivo, sou sanguínea; já minha irmã é fleumática, e a outra, colérica. É interessante perceber que fomos criadas quase da mesma maneira, mas somos tão diferentes quanto a isso. Pelas atitudes de Beatriz, ela é colérica — e isso explica bastante suas ações ao longo da história.

Quando deixamos de ser quem somos para sermos aceitos

Viver uma vida que não é a nossa ou tentar ser algo que não somos é um exercício que suga a energia de tal forma que, quando paramos para pensar, descobrimos quanto tempo perdemos. Às vezes gostamos de uma pessoa ou queremos fazer parte de um grupo e nos dispomos a abrir mão da nossa identidade para sermos aceitos, mas, no fim, o que sobra é o vazio. Quando as pessoas não nos conhecem de verdade, é um esforço inútil e triste ao mesmo tempo. Primeiro porque ninguém nos viu como somos, e segundo porque passaram a admirar alguém que não existe.

A cena em que Beatriz pega todos os pertences da mãe e põe fogo é o seu jeito de romper com toda a expectativa depositada nela pela avó. A menina abre mão do que esperam dela para ser ela mesma: vestir as próprias roupas, pentear o cabelo do seu jeito e começar a ser Beatriz, e não mais Ângela. Esse foi um dos momentos mais marcantes da leitura — talvez por eu ter me identificado com essa situação em algumas etapas da minha vida.

Confesso que, quando li a sinopse, senti um quentinho no coração, pois histórias com avós sempre me conquistam. Um autor de que gosto muito e que cria personagens assim com frequência é o sueco Fredrik Backman; é dele o livro Minha Avó Pede Desculpas, um dos melhores livros que li em 2019. Ao conhecer Como Nascem os Fantasmas, senti uma certa nostalgia.

A casa de Dona Divina é tudo aquilo que a casa de uma avó nasceu para ser: colorida, aconchegante e cheia de histórias. Isso é percebido pela descrição dos cômodos, dos objetos; você fecha os olhos e consegue se imaginar com quatro anos, sentada no chão, debaixo do aparador, ouvindo as conversas dos adultos.

Memórias que permanecem

Lembro dos meus avós com carinho (ambos já faleceram) e, quando fecho os olhos, consigo trazer à memória o que fez parte da minha infância: o fusca do meu avô (com o qual ele me levava para passear), a rede na sala perto da janela, os discos de vinil (lembro de dois em especial, um azul e outro rosa), vários brinquedos, incluindo o Fofão (igual ao que Ângela tinha), os ursinhos de pelúcia (sempre fui apaixonada por eles) e uma bicicleta (cuja cor esqueci).

Diz a minha mãe que meu avô me levava até a pracinha para me ensinar a andar de bicicleta, e foi ali que aprendi. Talvez seja por isso que hoje eu goste tanto de natureza e mantenha esse hábito. Crescer com os avós é ser mimada em vários sentidos. Eles passaram uma vida inteira juntos; meu avô era tão tranquilo, calmo… quando sua expressão mudava, era para um sorriso, senão estava com o pensamento longe. Sinto saudade de ambos.

Quem acompanhou a leitura de No meio da noite sabe o quanto achei incríveis as referências trazidas pelo autor — e, neste livro, não foi diferente! Verena nos proporciona uma verdadeira viagem no tempo, trazendo tudo aquilo que fez parte da nossa infância. Tem músicas, filmes, brincadeiras, desenhos, brinquedos, programas de TV e, o mais divertido, comidinhas que todos nós relembramos em algum momento.

O primeiro trecho que me trouxe nostalgia foi a ida de Beatriz à biblioteca da cidade. A professora passa um trabalho, e a menina decide pegar sua bicicleta, colocar o papel almaço na cestinha e pedalar até lá para fazer a pesquisa sozinha. É uma lembrança que guardo da minha pré-adolescência. Na cidade onde eu morava, podíamos usar a biblioteca do colégio ou fazer a carteirinha da biblioteca municipal. Lembro que só podia emprestar um livro (se não estou enganada), mas, como eu lia rápido, a moça me deixava levar três. Um dos meus favoritos dessa época foi O mistério da fábrica de livros, de Pedro Bandeira — tenho um carinho especial pela história.

Filmes que marcaram gerações

Quando o assunto são filmes, é fácil me perder comentando tantos que assisti ao longo dos anos. Um que representa Sessão da Tarde é, sem dúvida, A história sem fim, uma das fantasias mais bonitas que já vi. Quando criança, eu sabia cantar Never Ending Story, do Limahl, inteirinha. Quem consegue assistir sem ficar triste naquela cena do Atreyu e do cavalo? Ou sem se emocionar quando Bastian sai voando?

Outros filmes com cheirinho de nostalgia são O Exorcista, Mortal Kombat e O Exterminador do Futuro. Quando Lipe e Bea vão à locadora, automaticamente me lembrei da franquia Pânico. Meus pais não me deixavam assistir filmes de terror porque minha irmã tinha medo, então às vezes eu precisava assistir sozinha. Buscava no sábado de manhã para devolver na segunda. Tinha até um caderninho onde anotava informações sobre o local de gravação, elenco, trilha sonora e minha opinião. Meu primeiro blog foi no papel.

A trilha sonora e as brincadeiras que ficaram

Como eu a-m-o música, ela não poderia faltar nessa lista, concordam? Me senti abraçada ao ver Chiquititas cantando “tudo, tudo, tudo é teu, é só querer…”, a versão com Flávia Monteiro e Fernanda Souza. Ouvir as músicas dessa novela me fez voltar à rua onde eu morava no interior do Paraná e relembrar as crianças brincando, correndo atrás umas das outras, tomando banho de chuva e aproveitando cada momento como se a infância fosse durar para sempre.

E o que dizer das brincadeiras que aprendemos ao longo do tempo? Você conhece gato-mia? Quando faltava luz, era muito divertido pegar os lençóis e brincar no escuro. Também gostávamos de acender velas e fazer desenhos com as mãos nas paredes — aprendi isso com a minha mãe. Outro passatempo era observar os formatos das nuvens; até hoje faço isso quando passeio de bicicleta ou quando vou à praia.

Sabores e brinquedos da nossa infância

E as comidas? De vez em quando aparece uma trend nas redes sociais sobre como eram as festas da nossa infância. Os bolos com bolinhas de chumbo, o cachorro-quente, a tubaína, os chicletes com tatuagem, os docinhos… fechando os olhos é possível até sentir o cheirinho no ar.

Os brinquedos também se tornaram inesquecíveis: a boneca Susi, o Fofão, a Moranguinho (tão perfumada!), os jogos de tabuleiro. Ganhei uma Barbie ciclista — amava vê-la pedalando — e tenho até hoje. Uma pena o motorzinho não funcionar mais; já pensei várias vezes em reformá-la para continuar fazendo parte da minha coleção.

Por último, e talvez mais importante: Xuxa! Toda criança já foi a um aniversário onde cantaram esse Parabéns pra você mais que especial. Verena ainda insere Ilariê, igualmente nostálgica. Além disso, menciona a sandália que toda menina gostaria de ter ganhado no Natal. Foi uma verdadeira viagem ao passado, com direito a filmes, brincadeiras e trilha sonora.

Beatriz tem 11 anos e lembra bastante a Matilda. Enquanto uma se aventura pelo universo sombrio dos fantasmas, a outra mergulha na literatura. Mas ambas mostram o quanto podemos ser nós mesmas e ter as nossas próprias qualidades. Pensando nisso, busquei na memória alguns acontecimentos engraçados de quando tinha essa idade e que me marcaram.

Com essa idade eu não tinha bicicleta, então minha coleguinha Rafaela me emprestou a dela. Estava andando tranquila até que fui descer uma rua íngreme; o que eu não sabia era que o freio ficava nos pés. A velocidade foi aumentando e, como não sabia como parar, decidi pular. Resultado: dois joelhos ralados. Nunca chorei tanto na minha vida! Primeiro porque doía demais, segundo porque pensei na bronca que ia levar dos meus pais. Hoje é engraçado relembrar.

Tínhamos o costume de ter “roupa de sair” ou “roupa de ir à missa”, então, quando chegávamos em casa, colocávamos o pijama ou a roupa de brincar. Num domingo depois da missa ficamos brincando na rua com outras crianças e eu não voltei para me trocar. Estávamos correndo por todos os cantos, e fui pular uma cerca: rasguei o meu short (novinho!) e fiquei morrendo de medo da minha mãe brigar. Fui pra casa bem rápido e troquei de roupa — nunca mais usei roupas novas para brincar na rua (risos).

A casa que guardou minhas primeiras histórias

Outra lembrança que guardo com carinho é da casa onde morávamos. Era imensa, entrava luz o dia inteiro, e no quintal tinha pé de limão, laranja, manga e um varal onde pôr todas as roupas. Sempre gostei de ver os lençóis tomando sol e balançando ao vento. Foi nesse bairro que conheci e fiz amizade com a Juliana e a Erica. A rua não tinha asfalto e, mesmo assim, nos divertíamos tanto. Foi numa dessas brincadeiras que surgiu meu sonho de trabalhar num escritório e ser secretária.

Como nascem os fantasmas foi uma leitura intensa, bem mais do que imaginei. Me senti sugada para dentro da história de tal maneira que me deixou impressionada. Acompanhar os desafios de Beatriz, seus questionamentos, inseguranças e vontade de seguir o próprio caminho foi inspirador. A evolução da personagem foi um marco; acredito que muitos leitores possam se identificar em algum momento.

As coisas das quais abrimos mão no meio do caminho para alcançar nossos objetivos podem doer ou nos machucar, mas é preciso se conhecer e ter segurança sobre onde se quer chegar. E Beatriz, desde o início, sente dentro de si que é diferente — e que pode descobrir um universo completamente novo se deixar o medo de lado. Sua trajetória foi bem construída ao longo da história.

Quanto ao final, me fez recordar Harry Potter e a Pedra Filosofal: foi simplesmente incrível! Quando cheguei nessa parte, não consegui mais soltar e li até a última página. A autora construiu cenas épicas; consegui ouvir os sons, sentir as texturas, a velocidade — tudo acontecendo em câmera lenta e veloz ao mesmo tempo. Surreal!

Muito obrigada à Livraria Leitura e à SUMA pela oportunidade de conhecer Verena Cavalcante e ler Como nascem os fantasmas. Gostei demais da experiência!

Até o próximo post, Érika


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