Quando Deus Era Mulher: a história do sagrado feminino

Escrito em 1970, Quando Deus Era Mulher surge em um contexto profundamente marcado pelo machismo estrutural, que persiste até hoje, ainda que se manifestasse de formas diferentes naquela época. Já nas primeiras páginas, Merlin Stone nos recorda da existência de um culto às Mulheres no passado, em que bruxas e bruxos honravam Deusas em diversas culturas: egípcia, céltica, nórdica, mesopotâmica, entre tantas outras.
Quando a Deusa era celebrada
A autora recupera vozes antigas que ecoam até hoje: a visão da mulher como fonte eterna de poder, fertilidade e mistério. Naquelas culturas, a Deusa era reverenciada em sua completude, celebrada em seus múltiplos aspectos, e não reduzida a uma função limitada. Em contrapartida, o rompimento acontece com a ascensão do cristianismo, que pouco a pouco relega a mulher ao silêncio, à obediência e à invisibilidade social. Como a própria Stone cita:
“Cristo é a fonte do Sacerdócio. A sexualidade de Cristo não é acidental, e sua masculinidade não é incidental.” (San Francisco Chronicle, 25 de outubro de 1971).
A arqueologia não mente
A obra mergulha nas raízes do Neolítico, período no qual já existiam provas históricas e arqueológicas da religiosidade feminina. Porém, esses cultos foram perseguidos, silenciados e adulterados, e até hoje muitos livros de história cristã tentam negar sua existência. Mas a arqueologia não mente: há vestígios claros de uma religião da Deusa que foi violentamente suprimida. Como afirma Stone:
“Evidências arqueológicas, mitológicas e históricas revelam que a religião feminina, longe de se extinguir naturalmente, foi vítima de séculos de perseguição contínua e de supressão pelos defensores das novas religiões, que adotavam deidades masculinas como supremas. E dessas novas religiões derivou-se o mito de Adão e Eva e da perda do Paraíso.”

A perseguição ao sagrado feminino
Essa leitura é dolorosa, especialmente ao nos depararmos com relatos da destruição de templos, ídolos e santuários pagãos, registrados na própria Bíblia:
“Deveis destruir completamente todos os lugares em que as nações ocupadas por vós serviram aos deuses delas… esmagar seus pilares, cortar seus bastões sagrados, atear fogo às imagens esculpidas de seus deuses e fazer desaparecer seus nomes do lugar.” (Deuteronômio 12:2-3).
Paganismo distorcido e silenciado
É impossível não sentir o peso da dor ao imaginar quantas vidas, quantas memórias e quantos saberes foram apagados — não apenas pela violência física, mas também pela adulteração das narrativas. Além disso, até mesmo no cinema isso se repete: filmes como The Wicker Man (O Homem de Palha) e, mais recentemente, Midsommar, carregam uma visão caricata, demonizada e distorcida do paganismo, reforçando a ideia de práticas “sujas” e deturpadas.
Stone também denuncia a manipulação dentro dos próprios textos sagrados, onde a Deusa é apagada ou reinterpretada no masculino. O Velho Testamento sequer possui uma palavra para “Deusa”, substituindo-a por Elohim, de gênero masculino. Tudo para reafirmar a supremacia patriarcal, com o propósito de negar o vínculo humano com o feminino sagrado.
O legado esquecido
O livro critica ainda figuras acadêmicas renomadas, como o arqueólogo W. F. Albright, que descreveu a religião feminina como “adoração de natureza orgiástica, nudez sensual e mitologia grosseira”, exaltando, em contrapartida, a “pureza” do monoteísmo israelita. A parcialidade salta aos olhos: é o patriarcado dentro da própria ciência, tentando deslegitimar séculos de história.
Merlin Stone lembra do que foi esquecido pela sociedade atual: Deusas do Sol, da caça, da força, da criação. Mulheres que desenvolveram alfabetos, cultivaram campos, preparavam remédios e governavam como juízas, profetisas e líderes. Basta lembrar que, na Mesopotâmia, Ishtar era chamada de “Diretora do Povo” e “Senhora da Visão”, e registros mostram mulheres atuando como magistradas.

Eva e a dor como castigo
Mas, talvez, uma das passagens mais marcantes seja a reflexão sobre Eva e a dor do parto:
“Identificada com Eva, apresentada como símbolo de todas as mulheres, a culpa era minha, de maneira misteriosa – e Deus, vendo que o caso todo era por minha causa, escolheu punir a mim, decretando: ‘Multiplicarei muito tua dor na gravidez; com dor darás à luz teus filhos e ainda assim teu desejo será para teu marido e ele te regerá.’ (Gênesis 3:16).”
Desde crianças, aprendemos que a dor é uma condenação divina, um castigo herdado. Quantas mulheres ainda hoje não repetem, inconscientemente, esse mito?
Um manifesto pela memória
No fim, Quando Deus Era Mulher não é apenas um livro histórico — é um manifesto pela memória. Em suma, é um chamado para olharmos para trás e reconhecermos que houve um tempo em que a mulher era celebrada, não silenciada. É um lembrete de que a luta contra o patriarcado não é recente, mas milenar.
Ao fechar as páginas, a sensação que fica é de indignação, mas também de renascimento. Merlin Stone nos convida a resgatar a ancestralidade feminina e devolver à Deusa — e a nós mesmas — o lugar de honra que sempre foi nosso.

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