Sally Cinco: quando a mente se parte para existir

Vindo do mesmo autor do aclamado Flores para Algernon, Daniel Keyes, eu já esperava uma imersão na psique humana. Mesmo assim, conhecendo o Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) apenas superficialmente, por meio de filmes como Fragmentado (2016), entrei em Sally Cinco com uma ponta de desconfiança. Logo percebi que Keyes, fiel ao seu estilo, estava interessado em algo diferente. Baseado em casos reais e publicado em 1980, quando o termo mais usado ainda era “personalidades múltiplas”, o romance se afasta do espetáculo para retratar a dissociação como um doloroso mecanismo de sobrevivência.
Cinco vozes em uma só
Sally Porter, a protagonista, é discreta, tímida, quase infantil. Uma mulher frágil, quase apagada, mas que carrega dentro de si quatro outras personalidades: Nola, artista independente que hoje facilmente reconheceríamos como uma mulher feminista e decidida; Bella, sensual, festeira e sedutora; Jinx, explosiva e vingativa, a voz da raiva; e Derry, sonhadora e rastreadora, que acaba se tornando a narradora de parte da história. É através dela que conhecemos não apenas as outras, mas também a própria Sally.
O nascimento de algumas dessas personas é narrado de forma tão visceral que chega a incomodar. Foi especialmente doloroso acompanhar como Derry surgiu: a sensação de assistir ao exato momento da ruptura me deu agonia. Também Jinx, com sua violência, expõe uma parte da dor que não encontra outro canal para se expressar. Keyes não suaviza: há abuso, abandono, repressão, violência. Mas não são cenas gratuitas. São o retrato cru de como a mente se fragmenta para continuar existindo.

Feridas que ainda sangram
Apesar da intensidade, há momentos de previsibilidade. Não pela trama em si, mas porque a crueldade da sociedade, especialmente contra mulheres e crianças, já é conhecida. Algumas situações parecem óbvias justamente por revelarem o que ainda hoje é rotina: violência, hipersexualização, descaso. Isso não diminui o impacto; ao contrário, reforça o quanto a leitura incomoda por tocar em feridas tão reais.
Ainda assim, existe um ponto que me deixou em dúvida: a sexualização constante da protagonista. Em parte, ela faz sentido dentro do tema, já que Sally é vista por muitos apenas como um corpo. É significativo que uma das personalidades seja inteiramente construída na sensualidade (Bella), porém é nítido alguns excessos. Esse detalhe denuncia que, por mais sensível que seja, a narrativa é atravessada pelo olhar de um homem escrevendo uma mulher.
Ser inteiro nunca foi simples
Escrito há mais de quarenta anos, o romance carrega termos hoje obsoletos, e certas escolhas podem soar datadas. Ainda assim, Sally Cinco continua atual. A escrita de Keyes é poderosa: direta, crua, muitas vezes dura demais, mas capaz de nos manter cativos. Não é um livro perfeito, nem um livro “redondo”, mas é intenso e humano.
Porque, no fim, Sally Cinco fala sobre ser inteiro — e isso nunca foi simples. Entre vozes conflitantes, dores antigas e buscas inacabadas, Sally nos lembra que nascer humano é, desde o primeiro choro, aprender a sobreviver em pedaços.

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